entrechos
1.
"Eu, Assurbanipal, gosto de ler bons livros e de cortar
narizes e orelhas de meus cativos de guerra".
(Escrito encontrado na biblioteca de Tello,
antiga Babilônia-Suméria,
a mais antiga do mundo, com seus 5.500 anos de idade
e 30 mil manuscritos em tijolos).
Eu, que me vi tão longe de princípios e propósitos,
para finalmente ver a vida ao contrário,
livre exposto escrachado,
simulando, tateando, buscando entender
o crescer confuso, o renascimento consumido pela dor,
constatar o mal como fagulhas ao vento,
calado e ouvindo a voz dos mortos,
quando o fim retorna ao princípio, e o princípio
manifesta sua polida efemeridade.
Prêmio e punição.
Tudo na vida se resume a prêmio e punição.
Não pode um homem incoerente aferir seus membros
florescidos.
O que está longe vive eternamente, enquanto brande
o fulgor.
Consumindo a obsolescência da memória impostora,
o desconhecido enclausura os delírios da imaginação.
Como todo catálogo de ruinas, uma coisa
leva a outra.
O luxo leva ao vício.
O sexo leva a submissão.
Tudo resulta inútil enquanto não transida de amor a alma.
Todas as coisas finitas retornam um dia, lançando
sombras nos tempos sem glória.
A História, escrita em argila, papiros, pele de animais,
é contada de diversas maneiras.
Acreditar antecipa o letargo deleite das mordeduras.
Fatos, lendas, crendices à luz da cegueira
nutrem as epifanias.
Das coisas dadas como certas que nunca foram comprovadas.
Tudo o que se sabe engalana embustes.
Não há verdades absolutas.
Há que separar o joio do trigo.
Sempre, sempre e sempre...
No Paraíso de Dante não há lugar para os omissos,
os indecisos, que em vida não se dispõe a tomar partido.
Não há perdão para quem não é bom nem mau.
Há bocas que não falam e ouvidos que não escutam.
A estes caberá o castigo eterno do trabalho contínuo
e sem descanso, "como grãos de areia
revoluteando eternamente no remoinho".
Não no inferno de Dante, mas nas trevas humanas.
Para onde convergem os termos da rendição.
Assim como nos primórdios, o vilipêndio é a recompensa
da integridade.
O poder absoluto é um mal necessário.
Leis malfeitas ensejam a pior espécie de tirania.
Não obstante, os tiranos se perpetuam.
Anti-heróis, por assim dizer, posto que instrumentos
de grandes transformações, louvados e amaldiçoados,
muitos dos quais a própria encarnação do mal.
Dói-me o suave caminhar entre feras.
Dói-me não saber de tantas coisas.
Das histórias aniquiladas, contaminadas, proibidas,
e de tudo que escorre nos cantos, nas roupas, no giro
dos planetas, da existência...
Não me enquadro em nenhuma definição, não sofro
nem causo admiração, escrevo só por distração.
Envelheço sentindo todas as funções da alma em sintonia.
Inventando afeições e acrobacias.
A beleza ilusória e efêmera engendra a órbita do seu destino.
Cansei de ser coerente, chego a invejar os ignorantes,
os sociopatas, os narcisistas, que não tem dilemas existenciais.
Carência afetiva é o pano de fundo do meu glacial abrigo.
Daí escrever versos.
Melhor seria jogar pérolas aos porcos.
Já se perguntaram por que tantos poetas gregos
eram cegos ?
Tâmires, por exemplo, vangloriava-se
de ser melhor cantor que as Musas, filhas de Zeus,
e foi cegado por elas.
Demócono, Dafnis, Teiresias, Estesícoro,
como o próprio Homero,
também perderam a visão, menos mal que
não a inspiração.
A realidade, porém, era mais cruel que a mitologia.
Pois não eram as Musas nem mera fatalidade,
mas os próprios reis gregos
que mandavam cegar seus rapsodos.
Não por inveja e sim por ciúme, para mantê-los cativos
como pássaros em gaiola de ouro.
Musas, ah, as musas... Fonte eterna de inspiração.
Nove irmãs imortais, alegorias de beleza sem par,
deslumbram os homens e encantam poetas com seu cantar,
é quase um dever reverencia-las.
Clío, musa da História, que canta o passado
com sua lira dourada, ciosa de seu eterno legado.
Melpômene, musa da tragédia e da dor,
entoa sua arpa com tristeza e amargor.
Tália, musa da comédia, trazendo alegria e risos
em sua melodia.
Euterpe, musa da música e da harmonia,
cujos doces acordes a alma extasia.
Terpsícore, musa da dança e da poesia lírica,
de graça e encantos sem igual.
Erato, musa do amor e do erotismo,
com seus versos apaixonados, o coração delicia.
Polímnia, musa da poesia sacra e da meditação,
a inspirar paixão e contemplação.
Urânia, musa da astronomia e da astrologia,
desvendando os segredos do universo com sua magia.
E, por fim, Calíope, musa da eloquência e da epopeia,
com sua voz majestosa a vida homenageia.
Oh, musas imortais, que a humanidade enfeitiçam.
Erguendo-se em versos e doce graça,
cujas vozes ecoam eternamente,
provavelmente inventadas
pela singular raça dos poetas...
3.
"Há no pior de nós uma dose de bondade
E no melhor de nós uma dose de maldade
Que é descabido querer a todo instante
Apontar falhas em nosso semelhante".
(Henry Fieldding (1707/1754)
Grandalhão, fanfarrão, casca-grossa, comilão,
amante de bons vinhos e de mulheres de má reputação,
perdulário, baderneiro, o típico inglês aventureiro
do Século 18.
Criança grande, amigo leal e generoso, marido infiel
mas carinhoso (os melhores),
pai afetuoso, muitas vezes mergulhado na pobreza
mas ainda assim sem perder o sorriso, sem pompa
nem maldade, que fez graça até da própria enfermidade,
aspirante a romancista e por fim, autor consagrado do
clássico A História de Tom Jones.
Dois contraditórios retratos do mesmo personagem.
Não obstante intenso, conturbado, essencialmente fiel
a sua natureza despojada, apontam, unanimemente,
seus biógrafos.
Um homem tão cheio de contrastes e nuances que lhe permitiu
criar um dos mais extraordinários romances
de todos os tempos.
O virtuoso Tom Jones e o perverso Blifil Júnior se digladiam
no velho embate entre o bem e o mal.
Sem vencido nem vencedor, por conta da índole
generosa do autor.
"A natureza humana é em toda parte objeto de ódio
e de desprezo. Não há quem esteja livre de faltas", justificou,
em sua exortação à tolerância e ao perdão.
Muitas vezes me senti como o turbulento Fielding.
Tosco, grosseiro, atencioso, amoroso, ignorante,
irascível, sensível, delicado...
Quero crer que sou uma boa pessoa, mas como todo mundo,
tenho um lado sombrio.
Não ponho a mão no fogo por mim mesmo...
Me esforço para ser bom mas a natureza humana é soda.
Fomos amaldiçoados pelo pecado original, fadados a prevaricar,
tudo o que nos resta é contar com a compreensão e a
compaixão alheia.
Algo bem difícil, convenhamos.
Mas a vida parece gostar de contradições.
Há quem diga que a inspiração é mais importante do que
a educação, e às vezes, do que a própria cultura.
É fato que eventuais deficiências físicas não são
um impeditivo para frear o dom artístico,
muito pelo contrário.
Nem a cegueira, nem o alcoolismo e muito menos a loucura.
Que, por sinal, costumam ser uma espécie de gatilho
para desencadear o processo criativo de obras magistrais.
Como O Paraíso Perdido, de outro britânico notável,
Milton (1608/1674), escrito após ficar cego trabalhando
anos a fio, até altas horas, a luz de vela,
como secretário do ditador Cromwell.
Com o patrão deposto, Milton acabou amargando
alguns anos de prisão, foi quando voltou-se
à introspecção para conceber o poema que o imortalizou.
Não sou cego (em termos), alcóolatra, um pouco louco
(bipolar) talvez,
cultura limitada, dependo, visceralmente,
da tal inspiração para dar asas a imaginação.
Claro, não é tão simples assim.
Obviamente, a inspiração decorre do universo
em que se vive, dos envolvimentos e acontecimentos
que nos cercam.
Isto e mais o papel relevante do subconsciente, onde
se armazena o material que às vezes vem à tona
até em sonhos.
Inspiração ou erudição, o que é mais importante no processo
criativo ?
O que mais encanta, a poética sublime de Shakespeare
ou o rigor estilístico de Bacon ?
O que é mais impressionante, a poesia inflamada e tempestuosa
de Byron ou a elegância T.S.Eliot ?
Gostos e comparações à parte, o que não falta no universo
literário é genialidade.
Inspirado seja lá no que for.
"O homem é um deus quando sonha e um mendigo quando pensa"
(Friedrich Holderlin).
3.
Nunca se sabe ao certo quando se está sendo
esperto ou otário. Nem certo ou errado.
Posto que tudo é relativo, circunstancial.
Acreditar no que os olhos veem e os ouvidos escutam
é um convite ao engano.
Romper com o passado, rasgar os tratados, feliz
quem consegue.
O excesso de liberalidade é uma faca de dois gumes.
De liberal à libertino é um pulo.
O melhor de um livro não está na primeira página,
nem na última. Como a vida.
Sempre tive mais sorte do que juízo.
Até mesmo nos infortúnios, no fundo percalços necessários
para mudar de rumo.
O mundo não é divertido, mas pode-se fazer de conta que é.
Não sei cantar nem dançar, mas ainda não vendi
minha alma ao diabo.
Dinheiro não me compra, vou logo dizendo.
Faço meus os versos de Omar Khayyam, quando diz :
"Com um bom livro de versos à sombra da ramada,
Uma boa iguaria, regada a vinho, e tu, amada
A meu lado, a cantar, em terna lassidão,
Até o deserto será meu vasto Paraíso !"
O Rubaiyat foi um dos primeiros livros que me caiu
as mãos, ainda na adolescência.
Mas foi a biografia de seu autor que mais me chamou
a atenção.
Consta que ainda jovem, Omar firmou um pacto
com dois amigos persas, brilhantes alunos do mesmo mestre,
mas de índoles diferentes.
"Todos por um e um por todos. Qualquer um que se tornar
rico deve prometer repartir sua riqueza com os outros dois",
propôs um deles, Hassan ben Sabbah.
Passaram-se os anos e a fortuna acabou sorrindo
para o outro amigo, Nizam al Mulk,
que tornou-se Grão Vizir do sultão da antiga Pérsia, lá pelos
idos do século XII.
Tão logo souberam, os outros dois foram cobrar a promessa,
devidamente cumprida por Nizam.
Hassan ganhou um elevado cargo político, mas não se contentou,
passando a conspirar contra o amigo.
Descoberto, foi banido da corte, refugiando-se num velho
castelo fortificado, de onde amealhou sua riqueza
espalhando terror e violência a região.
Tanto Nizam como Hassam morreram ricos mas nada
de bom deixaram ao mundo.
Já Omar, que pediu ao amigo tão somente
uma pequena pensão que lhe permitisse viver em paz,
afim de estudar e escrever,
deixou para a humanidade
um dos maiores tesouros da literatura.
4.
Nas diferentes eras,
das mais obscuros a atual revolução tecnológica,
impingir sofrimento e dor tem sido a sina
da humanidade.
Até aí, nada de novo.
Novidade seria o mundo ter mais paz, harmonia.
Que os povos se respeitassem e aprendessem a conviver
pacificamente.
Que os conflitos e discriminações cessassem,
que se depusessem as armas,
e as pessoas se irmanassem,
dividindo e somando,
para construir um mundo como nunca houve.
5.
Lá pelo término da oitava lua, foram
desmarcadas todas as fronteiras.
Porque os lavradores não tinham nada para semear.
De modo que o mesmo tribunal usurpou o seu lugar
no trono.
Como aqueles que querem se estabelecer
no vazio do poder.
Toda espécie de perturbações demanda
justa distribuição, para administrar
segundo a lei que a rege.
Trabalho sem esperança é loucura, trajado
como alguém do povo.
Cavalos brancos com crinas douradas passeiam nas alamedas
de pêssegos.
Dia-a-dia a terra negra e fértil oculta o arco-íris.
Este é o mês das fortificações.
Cortam a madeira para fazer carvão.
O faisão vermelho vive num cenário de palcos.
O azul envelhece a juventude.
Nuvens se apinham sobre as luzes dos pescadores.
Juncos encharcados falam em tom de choro.
Chuva, rios vazios, colinas cobrem-se de jade.
Um pouco de lazer não faz mal a ninguém.
E a cova não era suficientemente grande para todos
os cadáveres.
Berenguendéns berloques traçam cachoeiras.
De longe, o ruído das estrelas perturba o sono dos grilos.
A fremente celebração universal encere misérias e grandezas.
O sol explode em fogaréu, varando as pedreiras feridas.
De repente, o rei de Tule jogou a taça ao mar.
Destrua-se ou oblitere-se, escreveu Marx, mas ninguém
entendeu. Nem ele, provavelmente.
Questionando sobre a obscuridade de seu poema Sordello,
Roberto Browning não se fez de rogado :
"Não posso agora lembrar-me do que eu queria dizer
quando o escrevi. Mas sei que era a coisa mais bela
que jamais escrevi. Dediquei minha vida à preparação
desses versos, sugiro que dedicais a vossa a descobrir-lhe
o significado".
É por aí...
6.
The beneful Helen
Hell for men
Hell for cities
Hel for ships
(Homero, referindo-se a Helena, a mais bela e pérfida mulher
que jamais existiu).
Por que pérfida ?
Não bastaria ser apenas bela ?
Não basta a beleza, por si só, para virar
a cabeça dos homens ?
Deveria, não fosse a beleza uma espécie de maldição.
Não propriamente por ser invejada, mas por se prestar a toda
sorte de sortilégios.
Uma bela mulher é uma espécie de prêmio que todo homem
cobiça, se julga merecedor.
Mas cujo preço geralmente é alto, inacessível ao comum
dos mortais.
A não ser através de barganhas e subornos.
Como a própria Helena, o prêmio oferecido ao príncipe Páris
que resultou numa guerra de dez anos, e a morte de milhares
de gregos e troianos.
Tudo em razão, pasmem,
de uma picuinha da deusa Éris, da Discórdia - só podia ser,
por não ter sido convidada para o casamento dos futuros
pais de Aquiles, no Olimpo.
O que para os deuses era um tapa na cara, loucos
por uma festinha para satisfazer seus imensos egos.
Daí ter interrompido intempestivamente a cerimônia
para oferecer uma maçã dourada - o famoso pomo de ouro -
"à mais bela" deusa presente.
Macaco velho, Zeus não quis se intrometer na disputa
entre Hera, Atenas e Afrodite, as mais ouriçadas
com a perspectiva de adquirir os poderes mágicos
atribuídos ao mítico objeto.
Hermes sugeriu então que alguém de honestidade ilibada
fosse o juiz, propondo o nome do jovem Páris,
filho do rei Príapo, de Troia,
aliás, de reputação nem tão ilibada assim - mas essa
já é outra história.
Assim, convite feito e aceito, cada uma das deusas
tratou de convencê-lo ou suborná-lo, aqui as narrativas divergem.
Hera lhe oferece ser um rei famoso e poderoso.
Atenas lhe propõe ser imortal e sábio como os demais deuses.
Mas ele escolhe Afrodite, que apenas e tão somente
lhe promete a mulher mais linda da terra, Helena.
Que não obstante ser casada com o rei Menelau,
abandona tudo para fugir com o apaixonado e imprudente
Páris, dando início a uma guerra de dez anos,
descrita por Homero (supostamente) na Ilíada,
que custou a vida de milhares de gregos e troianos,
e imortalizou nomes como Aquiles, Heitor, Agamenom
e Ulisses, e mais que todos,
Homero.
E o que se sabe sobre o destino da controversa Helena, após a
captura e a ruína de Troia, e o rumo incerto de seu amado ?
Reza a lenda que ela voltou tranquilamente para seu marido,
em Argo, devidamente perdoada por deuses e mortais.
P.S. Embora não haja comprovação efetiva da veracidade do relato acima,
a analogia sobre a maldição da beleza procede.
7.
Se este fosse meu último canto,
gostaria que soasse como o de Arturo Torres-Rioseco.
Repleto de alegria, pureza e heroísmo.
Mas, bem o sei, nada mais improvável.
Posto que, atado e subjugado pelos meus mais
variados pecados, silencio ante as sombras
de tantas paixões sepultadas.
Cinzas de muitos fogos afadigados povoam o gozo
dos deslumbramentos inocentes.
Minha`alma dolente dorme em lençóis perfumados.
Falenas de luz permeiam os muros carcomidos da minha
existência.
Do cheiro familiar de suores e flores
faço minha mortalha.
8.
Se um único conselho tivesse
que dar a um filho meu,
como lema de vida,
diria, sem titubear :
jamais se apequene.
Porque quando isso acontece
o respeito que é bom, vai para
o ralo.
De cavaleiro se passa à cavalo.
9.
O tempo passado se sobrepõe ao tempo presente.
Passa por minha mente como despojos de uma guerra
distante e perdida.
Meus ossos impregnados de lembranças claudicam
em meio a tranquilidade das tormentas.
À sombra do mundo sincopado "antes muerto que mudado"
(John Donne), passam os dias como pétalas
espalhadas pelo jardim.
Recuerdos de mulheres mortas permanecem como trens
descarrilhados.
Meus sentidos se agitam como hélices invencíveis,
já cansadas da viagem.
O tempo passado, companheiro ardente e complacente,
deixa quedar-se em desolada espera.
Sob o áugure da juventude encantada, mudei de rotas
mil vezes.
Investindo contra moinhos de vento com cornos de ouro.
Amei muitas vezes mas nunca o suficiente.
O mundo generoso tudo me ofertou, mas vivi como
um nababo inconsequente.
Eis minha história.
Transpondo espaços utópicos.
Isente-se minha mãe por ter parido um idiota.
10.
"Poesia não é bem literatura", sentencia Ezra Pound.
Vai ver, não é mesmo.
Talvez porque os seus alentados 120 Cantos primem
por ser ilegíveis.
Problema do leitor, é claro.
É mais ou menos como não ter nada a dizer,
depois de levar o texto ao limite da entropia.
Mas o silêncio requer que se continue falando, escrevendo,
compondo.
Blá-blá-blá e mais blá-blá-blá.
Os intelectuais de antanho adoram, locupletando-se ao tentar
decifrar o indecifrável.
Menos mal que há gosto para tudo.
E para todos os efeitos, a verdadeira regra é que não há regra.
Criatividade se recusa a qualquer predeterminação, tendo
o inclassificável como lema.
Há que dar mérito aqueles que abalam as estruturas.
Escribas delinearam o mundo em verso e prosa.
Ah, poetas malditos, contemporâneos do velho-novo
mundo, desbravando o núcleo das palavras,
desintegrando e reconstruindo novas vivências
e abordagens.
Quem mais "torce, aprimora, alteia, lima a frase, e, enfim,
no verso de ouro engasta a rima como um rubi?", como
escreveu Paulo Prado ?
11.
Louve-se a escrita.
Louve-se o bom uso das palavras.
Valorize-se o testemunho daqueles que nos permitem
viajar pela História,
tomar conhecimento dos feitos, das epopeias,
das tragédias que compõe a saga humana na Terra.
Tudo devido à escrita.
Dos primórdios da civilização aos frenéticos dias de hoje,
os mais estranhos, bárbaros e espetaculares eventos
se sucederam.
Devidamente registrados nos mais diversos formatos.
Dos símbolos rupestres aos algoritmos da era digital.
Da enigmática pedra de roseta ao alfabeto em libras.
Dos tesouros de sabedoria da Bíblia às 7.000 épicas páginas
do Mahabharata, ambos de múltiplos autores.
E assim sucessivamente.
Tudo vivido e computado na crônica de todos os tempos.
Em pungentes, belos, trágicos relatos.
"O não mais nada tudo egofluindo"(Olivero Girondo).
"Roídos pelas traças do tempo" (Mallarmé).
"Como a fileira de pérolas no fio de um colar (do Bhagavad-Gita)
12.
Uma vida inteira de desatinos
terá sido desperdiçada ?
Afinal, há desatinos e desatinos.
E não troco os meus por nada.
De que vale se fingir de forte
quando é tempo de rescaldo ?
Ver a vida como da janela de um avião
ou do rés do chão.
Entre sentimentos díspares,
há que livrar-se do peso da razão.
Deixar-se à deriva.
Viver o derradeiro sonho.
Quiçá o melhor de todos.
Fugazes, insanos momentos.
Na noite calma da minh`alma,
o despertar
tem sabor de déjà vu.
13.
"Os bárbaros não são em nada mais espantosos para nós
do que nós somos para eles" (Montaigne)
Num mundo de contrastes, nada surpreende.
Ou não deveria.
Em tudo e em toda parte, há hábitos e comportamentos
estranhos.
Normais para alguns, bizarros e até chocantes para outros.
Não há na face da terra poder maior e mais opressor
do que a força do costume.
Incutido aos poucos, plantado e instalado ao longo do tempo,
logo revela sua "furiosa e tirânica face, contra o qual
não temos mais liberdade sequer de levantar o rosto",
como narra Montaigne em seus Ensaios.
Assim é quando hábitos arraigados embotam a vontade,
afetando crenças e julgamentos.
E, naturalmente, a percepção sobre o caráter abusivo
e repulsivo de certas tradições.
De resto, normais para quem as pratica.
"O hábito é em tudo o mais poderoso mestre",
corroborava Plínio, o Jovem (61-114 d.C), sobre
força tão poderosa e antiga quanto a humanidade,
em sua exuberante diversidade.
Como dão conta os mais antigos escritos.
Dos hieróglifos egípcios à escrita cuneiforme dos sumérios.
E mais exacerbadamente ainda, nas mais vetustas civilizações
do planeta, nos confins da Ásia.
Nada se compara aos exóticos costumes entronizadas
em países desde sempre superpovoados,
como Índia e China.
Ou pior ainda, no semi-selvagem continente africano.
onde tribos bebiam o sangue dos inimigos mortos
e usavam seus ossos como enfeite.
Os costumes com o tempo legitimam toda sorte de aberrações.
Há recantos em que os homens mijam agachados
e as mulheres de pé.
Há lugares em que é permitido matar os mais velhos
ou com doenças terminais, como um ato de caridade.
No que se inclui alguns dos países mais evoluídos,
sob o nome de eutanásia.
Há terras em que se come com uma mão e se limpa a bunda
com a outra, por acaso os mais ricos do planeta.
Há países (China) em que arrotar e escarrar após as refeições
é uma demonstração de saciedade e higiene.
Mas há outros ( a tribo Masai, no Quênia ) piores ainda,
onde cuspir na cara do outro é uma forma de cumprimento,
e os bebês são batizados em meio a cusparadas.
E por aí afora.
Nojento ? Ora, como se disse de início, hábitos repulsivos
se tornam normais para quem está acostumado com eles.
Tudo é aceito e praticado, independente da verdade
e da razão, e o que é diverso, rejeitado.
Quando os gregos de Alexandre, o Grande, invadiram
a Índia, alguns nativos tentaram persuadi-los
a aderir ao costume local de comer os mortos.
Ao passo que estes sugeriram aos indianos que passassem
a queimar os defuntos.
Ambos rejeitaram as propostas, horrorizados.
Os costumes adotados falam mais alto.
Como as próprias crenças religiosas.
Como os próprios regimes de governo.
Quem foi criado e vive sob a pregação religiosa,
a falta de liberdade, a supressão dos direitos,
as divisões de castas, de classes, a discriminação
étnica-religiosa, a regimes opressores e sanguinários,
acaba se sujeitando a tudo.
E o mais grave, perde-se a vontade, a noção do certo
e do errado, e a própria capacidade de se indignar.
Bárbaros ou não, é o pior que nos pode acontecer.
14.
O pescoço longilíneo e esbelto.
A cabeça simetricamente ovalada.
Os olhos amendoados, expressivos e inteligentes.
A fronte lisa e vigorosa.
Encimada por um toucado alto e firmemente ajustado,
que sugere o ankh da vida eterna.
Os lábios cheios e não demasiadamente grossos.
A pele corada e resplandecente.
Em tudo e por tudo, a exótica e aristocrática beleza
de Nefertiti.
Da qual só restou a escultura da cabeça, encontrada
numa das inúmeras escavações nos antigos
túmulos egípcios.
A mulher mais fascinante que jamais existiu.
Não há quem não tenha essa impressão ao vê-la
no museu de Berlim.
15.
Não há justiça.
Não há moral.
Não há verdade.
Não há honestidade.
Não há grandeza.
Não há decência.
Não há amor.
Não há amizade.
Não há nada em que se possa
acreditar de boa fé.
Incondicionalmente.
Não há nada que sobreviva
ao tédio de Deus.
16.
Como se livrar de tanto lixo, já se perguntava
Maiakóvski, que já tinha todas as respostas.
Em conversas com o sol, com as estrelas,
enquanto cavava trincheiras com seus versos
revolucionários.
De fato, haja incinerador para tanta sujeira.
Para os velhacos que tomam conta do poder.
Cabras safados que matam toda esperança pela raiz.
Contra as quais nada se pode fazer.
Posto que legitimados pela patuleia que sonha
com picanha regada a cerveja.
Nada de novo no front, pão e circo nos entretém.
Besteira ficar se preocupando.
Os pobres e ignorantes que se fodam.
O diabo que os carregue.
A liberdade vigiada pela ditadura de toga
fede a impostura.
Empolgação sem contexto, me engana que eu gosto.
Por sorte, ainda há dias terrivelmente belos.
Tudo a seu tempo, alheio ao duro julgamento.
É o que há.
17.
A notícia correu célere pelas ruas do Recife.
Frei Caneca havia sido preso, a "Confederação do Equador *"
estava aniquilada pelas tropas imperiais.
Por onde passava o cortejo, ouvia-se
gemidos de dor e compaixão.
Diante do patíbulo, o preto Agostinho Vieira,
cuja pena
de morte seria comutada, recusa o papel de carrasco,
e é morto a coronhadas pelos soldados.
Outros presos, também condenados à morte,
negam-se a executar a nefanda tarefa.
Ordena-se então que em vez de enforcado,
o réu seja fuzilado.
A tropa se agita. Um soldado desmaia. Mas ordens são
ordens, e um pelotão é formado.
Frei Caneca é amarrado a um poste, mas dispensa
a venda nos olhos.
Perguntado se tinha algo a dizer, um último desejo,
foi firme :
"Amigos, apenas peço para que caprichem na pontaria,
não me deixem padecer por mais tempo..."
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* A assim denominada, "Confederação do Equador", foi uma revolta
popular ocorrida em 1824, liderada por Pais de Andrade, que se
espalhou pelos estados nordestinos, e contou com a adesão
de vários padres engajados na causa republicana, entre os quais
o mais querido e proeminente, Frei Caneca. Cuja execução teria
acontecido mais ou menos nas circunstâncias acima relatadas.
18.
Já joguei muita bola, empinei pipa,
brinquei de pião,
jogo de botão.
Hoje, brinco de enganar o coração.
Já tive tudo na vida,
hoje nem pai nem mãe tenho mais.
Minha cama é de pregos.
Meus dias, de um prisioneiro. Todos os corredores
me conduzem ao patíbulo de meus erros.
Não há mais possibilidade de fuga.
Sequer há para onde fugir.
Sem a mocidade que nos impele para o abismo,
tenho a mente crivada de dúvidas e incertezas.
Ainda bem.
Nada mais enganoso que as certezas.
19.
declaração de princípios
1. Declaro, para os devidos fins de deveres e direitos, não
me sentir credor nem devedor de nada que não seja gratuito,
espontâneo, incondicional.
2. De nada que não possa ser compartilhado, que não tenha
poros, raízes, penas, entranhas, coração.
3. De nada que não implique em sentimentos corrompidos,
líquenes, pélagos, nojos, limbos, de resto, o adubo da vida.
4. De nada que não seja decadente, sujo, assombrado, despojado,
que é onde se encontra a sabedoria da indigência.
5. De nada que não tenha reentrâncias, gretas, rachaduras,
reveladores de arcanos mentais.
6. De nada que não possa ser visto, apalpado, cheirado, degustado,
por motivos óbvios.
7. De nada que não seja habitado por pedras, mendigos, bichos,
que não precisam ser ninguém na vida.
8. De nada que não esteja aberto aos desentendimentos.
9. De nada que não possa habitar seus próprios desvãos.
10. De nada que não possa dar concretude à solidão.
11. De nada que não tenha propensão à escória, que não seja
sazonal, que não possa dar testemunho das obras de Deus.
chutando o pau da barraca
Reza a lenda que certa vez, num acesso de fúria, o grande Genghis Kahn decepou a cabeça da criatura de seu maior apreço, um falcão que o acompanhava em suas longas jornadas e intermináveis batalhas. Até aí, nada demais, em se tratando de um dos maiores sanguinários da História. As circunstâncias é que foram de lascar.
Marchava ele e seu exercito de mongóis há semanas por um deserto, cansados e sedentos, quando a ave os conduz a um pequeno oásis, onde se regojizam com a maravilhosa visão de um córrego se precipitando do alto uma cachoeira. Como de praxe, coube ao chefe a primazia de primeiro matar a sede, mas eis que para surpresa de todos, num voo rasante, o falcão o impede de beber, afastando o vasilhame com as garras.
Mais pasmo do que irado, Genghis Kahn brincou com seus comandados que o provavelmente o calor havia afetado os miolos do bicho. Mas ficou possesso quando ao repetir o gesto, o falcão volta a impedi-lo de beber. Ao que saca da espada e ameaça matá-lo, caso insista no que lhe parece uma afronta injustificável. Dito e feito : ao ver o pássaro aproximar-se em nova investida, decepa-lhe a cabeça num golpe certeiro.
Após sacrificar assim, impulsivamente, o companheiro de tantas jornadas, o qual estimava mais do que a todos, agachou-se para enfim recolher o precioso líquido, quando do alto do penhasco de onde despencava a cachoeira, um de seus guerreiros gritou para que não o fizesse, chamando-o para ver o que havia encontrado na nascente do córrego : uma imensa cobra, já em adiantado estado de putrefação.
Ou seja, a água estava envenenada, e se dela bebesse, ele e seu exercito provavelmente morreriam. E a história da humanidade seria outra.
Verídica ou não, a passagem embute uma lição muito óbvia : a de que jamais devemos tomar decisões radicais levados por impulso ou emoções exacerbadas. Pois elas afetam o juízo, induzem a erro, equívocos, injustiças muitas vezes irremediáveis.
O que não significa que todas as explosões e reações intempestivas sejam maléficas. Há situações-limite que não só justificam como exigem tomadas de posição à altura. É quando o famoso chutar o pau da barraca se torna imperioso, uma questão de moral, dignidade. Diferentemente do primeiro caso, as perdas aqui são saneadoras, benéficas, ainda que sujeitas a naturais dúvidas e questionamentos. Principalmente quando se trata de rompimentos de cunho afetivo, em que as boas recordações tendem a causar surtos de arrependimento e auto-flagelação.
Faz parte do processo assumir culpas e responsabilidades, hiper-valorizar o que foi supostamente perdido, mitigar as reais causas da ruptura, esquecendo-se do que antes era motivo de crescente e insuportável insatisfação. Coisas como o distanciamento, a indiferença, a falta de interesse sexual, e uma série de outros problemas daí decorrentes, protelados ao extremo de ensejarem desfechos radicais e traumáticos. Sentimentos represados que quando transbordam, às vezes do nada, posto que já no limite, causam estragos gigantescos e irreparáveis.
Nada é mais desafiador para o ser humano do que controlar seus instintos e emoções. Mesmo quando justificáveis, tais rompantes sempre deixam sequelas. Quase sempre dolorosas. Mesmo quando benéficas.
21.
amor moderno
Os tempos modernos rompem barreiras,
desmontam antigas fachadas.
Exalam esplendor e vulgaridade,
enquanto se diluem na brevidade.
Mulheres de bundas perfeitas atiçam
a imaginação.
É tempo de dar folga ao coração.
Conter os sentimentos.
Não vá ser burro de se apaixonar.
Acostume-se ao descartável.
Deixe de confissões patéticas, ninguém liga
para seu chororô amoroso.
Ignore certas coisas. Chifre está na moda.
Em tempos profanos, a consciência proíbe e liberta.
Imaginação a serviço da fantasia.
Possuindo e despossuindo, o atavismo monacal e sublime,
modernamente, tudo corrompe.
Percorro meu prosaico itinerário
escrevendo poesias de amor
num mundo pervertido.
22.
Os ruídos da cidade rompem as litanias festejantes.
A multidão obediente vai e vem, devidamente
pautada e rastreada.
Ruminando causas perdidas.
Respirando o ar poluído da privacidade
vigiada.
No pleno gozo da liberdade sujeita aos humores
de magistrados biltres.
A via modernosa trespassa-se no fio da navalha.
Qualquer descuido e a maionese desanda.
Do nada, a casa cai.
Ao essencial averba-se o dízimo de pau e pedra.
Estraga-se a vida em excelsos jogos.
Dissolvida em desejos castrados e alegorias multimídias.
Desvirtuada por amores tortos, overdoses de funks
do baixo meretrício.
A bulha dos inconformados exorciza os adoradores
de umbigo.
O tempo das verdades sonegadas guarda segredos
enfurecidos.
Destextualizar a indignação coletiva inaugura a era
da pseudo-democracia.
Os paradoxos convivem naturalmente, até quando ?
O difícil desacomoda-se correndo riscos.
A incomunicabilidade é a trincheira da última bala.
Cúmplice de muitos e finos tratos, fulano de tal
rendeu-se a linguagem gloriosa e guerrilheira
da indignação recidiva,
reconhecendo a dualidade de não sentir falta
do que não se vive sem.
Poderia ser alguém conhecido, alguém
entre inúmeras pessoas cuja existência ignoramos,
num tempo hipotético, de longos caules,
saindo do armário, nem doce nem amargo,
impregnado de valores abstratos,
o próprio proto-macho-moderno-hermafrodita
num rio de piranhas, morrendo de sede no
líquido amniótico, privado do sol da própria casa,
entre avencas, lírios, rosas, articuladas em tempos
difíceis, com fome de mísseis e amores putrefatos.
Um fulano de tal ungido e compungido pela palavra asfixiada,
avant la lettre a metafísica das loucuras, a fim de libertar
o fogo trancado,
as cataratas de oceanos, em pleno exercício de remissão,
para que as profecias se cumpram e os cardumes
de sardinha encontrem paz na pança das baleias.
Um fulano de tal que busca a perfeição que não existe,
o entendimento que santifica o profano, saciar a fome que
alimenta a carne, despoluir o espírito do peso da salvação,
o alter ego mais cego que morcego,
o candeeiro de estrelas cavalgando o olimpo, escassez ou
excesso, tanto faz.
Um fulano de tal que sonha partir desta para melhor triunfalmente,
perdoando a mágoa, liberto e reconciliado com as entristecidas
células, limpo de espírito, em paz com o Altíssimo, frutificado
sobre a terra o seu quinhão à criação, pronto para cumprir o
destino glorioso do Bardo Thödol.
Que assim seja, AMÉM !
23.
A grande aldeia global de McLuhan se estreita,
se transporta instantaneamente.
Invade lares, pátrias, ignora fronteiras,
alheia a contrastes e discrepâncias nunca vistos.
O planeta evolui involuindo.
O mundo se interconecta
se evolando
se eximindo
cohabitando sub-mundos, paraísos artificiais.
Morticínios e genocídios banalizados nos breaking news,
enquanto a distinta plateia se deleita com o show business.
Astros do ludopédio monopolizando multidões, faturando
milhões, inevitável não pensar nos bilhões
que sofrem toda sorte de privações,
mas o mundo
nunca primou por ser justo, muito menos...humano.
A grande aldeia global apenas ampliou a desigualdade.
A violência e a criminalidade ganharam novos contornos,
golpistas se multiplicaram, incautos é que não faltam.
O mundo agoniza sob a pantomina de sempre.
A Ucrânia é dizimada, a terceira - e apocalíptica -
terceira guerra mundial se avizinha, mas todos
agem como se nada estivesse acontecendo.
Só se ligam no futebol,
no besteirol que grassa nas redes sociais,
nas putarias on line.
Ninguém tem as mãos limpas, o homem engana
o homem, conquanto a vida engana a vida.
É tempo de frágeis afetos e compromissos inconclusos,
escandidos em bélica paciência.
O sangue fresco de novas auroras flui além dos enganos.
A secular injustiça não se resolve.
Nada além da tola presunção de vivermos
o ápice da história.