sábado, 31 de outubro de 2020


              um pouco de história ( e heroísmo)





A notícia correu célere pelas ruas do Recife.

Frei Caneca havia sido preso, a "Confederação do Equador *"

estava aniquilada pelas tropas imperiais.

Por onde passava o cortejo, ouvia-se 

gemidos de dor e compaixão.

Diante do patíbulo, o preto Agostinho Vieira, 

cuja pena

de morte seria comutada, recusa o papel de carrasco,

e é morto a coronhadas pelos soldados.

Outros presos, também condenados à morte,

negam-se a executar a nefanda tarefa.

Ordena-se então que em vez de enforcado,

o réu seja fuzilado.

A tropa se agita. Um soldado desmaia. Mas ordens são

ordens, e um pelotão é formado.

Frei Caneca é amarrado a um poste, mas dispensa

a venda nos olhos.

Perguntado se tinha algo a dizer, um último desejo,

foi firme : 

"Amigos, apenas peço para que caprichem na pontaria,

não me deixem padecer por mais tempo..."


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* A assim denominada, "Confederação do Equador", foi uma revolta

popular ocorrida em 1824, liderada por Pais de Andrade, que se

espalhou pelos estados nordestinos, e contou com a adesão 

de vários padres engajados na causa republicana, entre os quais 

o mais querido e proeminente, Frei Caneca. Cuja execução teria

acontecido mais ou menos nas circunstâncias acima relatadas.






                quando um ama e o outro não



                         


O que me conforta hoje

é saber que fiz o melhor que pude. 

Consciente de que perdi tempo demais

ao insistir em causas perdidas.

Com pessoas que não foram

merecedoras do meu amor.


Errei ao ignorar que quando o amor

acaba, ou sequer existia,

insistir de nada adianta,

piora ainda mais as coisas.

Nem todos conseguem entender

que quando o amor acaba para um, 

mas para o outro não, 

o mínimo a fazer é respeitar,

tratar com carinho,

e jamais, jamais,

deixar que a mágoa e o ressentimento

se sobreponham ao que de bom

foi deixado para trás.

Não massacrar ainda mais um coração

que sofre

sem ter culpa por amar. 




sexta-feira, 30 de outubro de 2020





Quando as trevas os séculos dominavam

Pendiam os ladrões nas cruzes

Hoje no século das luzes

No peito dos ladrões pendem as cruzes


(adap. frei Antonio da Conceição/1549-1589) 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020




Se não for pedir muito,

não seja pouco.


Se não for para ficar,

não se demore.


Se não for para dar,

não ofereça.


Se não for para cumprir,

não prometa.


Se não quer,

não enrole.


Se não sabe,

não fale.


 


                            o novo padrão vigente






Não invejo as novas gerações.

Com seus brinquedinhos eletrônicos.

Seu estilo de vida fútil, promíscuo, 

regado à drogas, 

fiéis devotos do consumismo, da cultura do lixo.

De gostos e hábitos estranhos.

Imersos no mundo virtual.

Escravos da aparência, dos modismos, das grifes.

Manipulados por gurus de araque. 

Idólatras, ególatras, desajustados,   

eis o novo padrão vigente.

Em que o normal

é não ser normal.





 

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

                                                  

                                sem noção

                                    




Eu já fiz muita questão.

Corria atrás.

Não media esforços.

Absolutamente sem noção

das coisas.

Do ridículo.

E ao perder o amor-próprio,

perdi o que nunca poderia perder :

o respeito.

O auto-respeito.

A dignidade.


Hoje não faço questão 

de mais nada.

Quem quiser, que me aceite do jeito 

que sou.

Estou velho para mudar.

E nem quero.

Estou em paz comigo mesmo.

E é o que me basta.




 

domingo, 25 de outubro de 2020



                       mal-dito-dia



Mal-o-dito-dia 

raiou

e tudo girou

quebrou

a labirintite

a televisão

o dente

a câmara frigorífica

quem eu queria que lembrasse 

de mim

não lembrou.

Ô, Mal-dito-dia 

A propósito,

Feliz aniversário pra eu...




                                                             desejo



                          


Se eu pudesse formular um desejo,

satisfazer uma única vontade ,

tipo assim,

presente de aniversário,

garanto, juro,

não pediria uma conta recheada,

as mulheres mais lindas.

Tudo o que pediria

seria poder reviver um único dia

daqueles verões mágicos

no Agudo.


Rever minha grossmutter inesquecível,

meus tios, primos, curtir aquele ambiente

gostoso de final de ano,

e sobretudo, 

reaver o espírito harmonioso

que ali imperava, 

de uma verdadeira família,

em que meus pais pontificavam,

rindo, dançando, 

esbanjando o amor que os manteve unidos

por mais de sessenta anos. 

Até o fim de uma vida 

que não existe mais.






 










  


                            minhas outras vidas






Eu vi a chegada dos deuses-astronautas,

que legaram inteligência e barbárie

à humanidade.

Eu fui um dos filhos de Adão e Eva, 

tive filhos com minha própria irmã para assim 

povoar o mundo. 

Eu vi Caim matar Abel por inveja, inaugurando

em grande estilo a sanha perversa da humanidade. 

Fui um homem das cavernas morto

por um tigre de sabre.

Eu vi a água subir até cobrir o topo 

das montanhas, da proa da arca de Noé.

Eu fui um animal que não existe mais. 

Fui animal,

verme, pó, até perdi a conta de quantas vezes, 

só não fui Buda.

Eu vivi na civilização mais evoluída que já existiu

na face da terra, que no entanto,

afundou no meio do Atlântico pelos motivos de sempre.

Cuja cultura os gregos resgataram.

Eu fui um dos milhares de escravos

que construíram as sete maravilhas do mundo,

e muito mais.

Que remavam sob chibatadas 

nas grandes esquadras, e morriam feito moscas

nas grandes batalhas. 

Que edificavam, plantavam, trabalhavam, 

como trabalham até hoje,

sob o tacão dos poderosos.

Fui guerreiro de vários exércitos, morto,

esquartejado, queimado, empalado, torturado,

fui herói e covarde, apodreci em campos de batalha,

como também morri gloriosamente,

como um dos bravos espartanos que tombaram

em Termópilas,

na mais épica e desigual batalha de todos os tempos.

Em que os 300 comandados por Leônidas

contiveram

por longos e sangrentos três dias,

o exército persa de mais de 300 mil homens 

reunidos por Xerxes.

Mais sorte teve Fernão Cortez, que viu 

do alto de seu cavalo - este que vos fala -

um milhão de aztecas se curvarem placidamente,

acreditando estar diante de um deus materializado.

Eles que nunca haviam visto um cavalo.


Meninos, eu vi e participei de tudo o que possam

imaginar, ao longo de minhas vidas. 

A ascensão e queda dos maiores impérios. 

Povos inteiros sendo dizimados, 

genocídios, holocaustos, em nome das causas mais abomináveis.  

Vi a flamante Cartago banhada em sangue,

Treblinka, Hiroshima...

Vi o melhor e pior da raça humana.

Fui um dos ladrões crucificados ao lado de Cristo -

o que não pediu perdão.

Fui mártir, covarde, experimentei todas as mortes, 

liderei e desertei, traí e fui traído, 

amei,

fui amado, odiado, uma infinidade de vezes.

Vivi centenas de vidas mas, querem saber ?

Nunca vi Deus.





 



  





  



 


   um dia como outro qualquer





Um dia como outro qualquer.

Sem nada de diferente.

Sem nada de especial, como um dia já foi. 

Na casa de meus pais.

Quando ainda tinha família.

A vida toda pela frente.


Agora que sou só eu e eu mesmo,

não tenho motivos especiais para comemorar

o dia dos meus anos.

Além dos de sempre.

Como, aliás, sempre faço.

Não exatamente comemorar, mas ter 

consciência de que bem ou mal,

a vida tem sido boa.

Tenho me virado sem depender de ninguém.

Sem precisar de ninguém.

E hoje em dia, finalmente,

sem esperar nada de ninguém.

Posto que as expectativas frustradas 

é que matam aos poucos.

E as que mantenho hoje são absolutamente

realistas. 

Só dependem de mim.

De mim e da companhia luxuosa dos joões de barro, sabiás, bentivis, 

que me saúdam infalivelmente, mal rompe a manhã.

Como nesse dia dos meus anos.













sexta-feira, 23 de outubro de 2020

  






                cadáver insepulto





Nada mais pode ferir-me.

Nem as velhas coisas estimadas, enfim exorcizadas. 

Coisas esquecidas que durarão para sempre, 

estranhamente eternizadas.

Mas agora, submissas como tácitos escravos.


Paira sobre mim a aura do irredimível passado,

que resiste em sonhos persevagantes,

que se perdem na vertigem do tempo.

Estou pronto para o que der e vier.

Não temo a solidão, pois há muito já estou só.

Não temo o sofrimento, o esquecimento,

posto que purificam.

Não temo o que virá, o que provavelmente

não entenderei.

Deixei de sonhar-me.

O destino irrevogável encena a trama que se esgota.

Em que o amor jaz como um cadáver insepulto.

Que já não cheira nem fede.









                                                  compensações





Saúde

Trabalho

Poucos, porém sólidos,

afetos.

O que mais se pode querer

da vida ?


Nada do que se ganha de graça

presta.

Pois não se dá valor.

Acostuma mal.

Nunca satisfaz.


Nunca ganhei nada 

de mão beijada.

Nem o que me era devido.

Mas fui largamente compensado.


Com saúde.

Trabalho.

Poucos, porém sólidos,

afetos.




quarta-feira, 21 de outubro de 2020




                                                  momentos





Momentos. 

Então,

é só o que ficou ? 

Vagas lembranças de uma história

de quase vinte anos 

reduzidos a...momentos. 


As milhares de palavras

que busquei para tentar entender 

e assimilar

um fim tão amargo,

você só precisou de uma

para matar a charada. 

Momentos.

Pura e simplesmente momentos, e como tais,

efêmeros,

descartáveis.


O que explica também, é claro,

o distanciamento,

a frieza, a indiferença que tanto 

me machucaram.

E tantos versos loucos suscitaram. 

Como pude ser tão imbecil ?







  

terça-feira, 20 de outubro de 2020



                     em nome do Pai



   


Senhor, 

sei que não sou digno 

de nada pedir.

Consciente da infinidade de desatinos

que tenho cometido.

Da minha pouca fé.

Mas, Senhor,

não peço nada para mim.

E não tenho a quem recorrer.

Não sei mais o que fazer.

Em não sendo suficiente minha boa vontade. 

O que tenho feito no plano material. 

Dentro de minhas parcas possibilidades.

Eis me, então,

ao lado dos fracos e desesperados,

que não tendo mais em que se agarrar,

recorre a ti, Senhor,

para que em nome deste amor que a tudo se

sobrepõe,

ampare aquela de quem sou tão devedor.

Pela gratidão que transcende o próprio amor.


Em nome do Pai,

Do filho,

e do Espírito Santo,

Amém.




 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

domingo, 18 de outubro de 2020


                      virgens em bordel




A verdade é que a gente não sabe nada 

das mulheres. 

Ao acreditar e fantasiar, não passamos 

de verdadeiros trouxas nas mãos (e aos pés) delas.  

Até esquecemos que as musas, as deusas, as gatas

maravilhosas e super-produzidas que a gente

vê nas redes sociais, são de carne e 

osso como todo mundo.

Peidam e cagam como qualquer mortal. 


Ah, as musas...

Pouco ou quase nada diferem das putas tradicionais.

Posando de virgens em bordel. Dando mole 

e reclamando de assédio. 

Indo a orgias e se dizendo vítimas de estupro.

As musas de antigamente não jogavam 

tão baixo.







                o remédio


Como diz o velho Bukowski, chega um momento em que a gente fica tão sozinho que tudo começa a fazer sentido. Não no sentido de expiação, castigo, desgraça, embora às vezes assim o pareça. Mas para quem chegou a esse ponto por opção, ou mediante um providencial empurrãozinho do destino, a solidão, estar sozinho, chega a ser uma benção.

Pense nas vantagens de não se chatear à toa, nem chatear ninguém. Não precisar dar satisfações nem justificativas pelas mínimas coisas. Não precisar mentir, disfarçar, esconder, por senha no celular, não se sentir desprezado, usado, excluído, enganado, uma merda.

Pode se distrair sem culpa, fazer o que der na veneta, fazer merda, enfim, ser dono do próprio nariz.

Mas, é claro, tudo na vida é relativo. Devo reconhecer que em meio ao turbilhão em que me vi nesses últimos anos, topei com uma doida que só não me levou a passar por essa via crucis de novo porque ela não quis. Foi mais um inestimável favor que me fez. Não topar uma relação sem futuro, com alguém ainda preso ao passado, a um amor insubstituível. 

Mais um motivo para valorizar essa solidão que é mais uma libertação. Das injunções da vida a dois. O que um dia cansa, satura, bagunça o coreto. Às vezes ao ponto da ruptura. Nem por isso menos sofrida, dolorosa. Quando a chama do amor não se extinguiu, apenas amornou, arrefeceu.

Daí o drama das separações. Até a aceitação de que há males que vem para bem. Que não há uma só coisa perdida que não projete uma sombra, que não ofereça novas oportunidades.

O remédio é tornar as boas lembranças aliadas, ao invés do virtual luto que a separação, o ocaso de um grande amor ocasionam. Quando, na verdade, só o que morreu foi o tédio.


 







 






 









sexta-feira, 16 de outubro de 2020


               desculpe, 

     se não me fiz entender




Engano pensar que há uma palavra para cada coisa, pois há coisas que excedem qualquer coisa que as palavras possam expressar. Sentimentos, sensações, que nem as pessoas mais habilidosas com as palavras conseguem exprimir. O que acaba sendo possível através de imagens, em telas, nos acordes de uma música.

Mas o que poderia ser uma desvantagem da oratória e da literatura em relação a essas outras manifestações artísticas, é compensada pela poesia. Que quando em seu estado mais puro, seja clássica, romântica ou de inspiração onírica (a mais comum), dá conta da missão de restituir à palavra, ao menos de forma parcial, sua primitiva, e agora mais do que nunca, oculta virtude. Quem o diz não sou eu, mas um mago das letras, o argentino Jorge Luis Borges, que preconiza dois deveres a todo verso que se preze : comunicar precisamente um fato, e tocar-nos emocionalmente.

Quanto a estética, gosto é gosto, e como tal, não se discute.

Já disse várias vezes que não sei se o que escrevo tem valor literário, e estaria mentindo se dissesse que não me preocupo exatamente com os dois aspectos destacados por Borges : aliar factualidade e sentimento. Curiosamente, ao contrário do que pensava outro gigante das letras, Fernando Pessoa, para quem a emoção deve estar à serviço da razão. 

O que explica o seu extraordinário poder de dissecar os sentimentos, enquanto os versos de Borges se caracterizam pela reflexão e o uso até exaustivo de metáforas, em que passeia sua larga erudição em torno de espelhos, espadas, unicórnios e labirintos.

Ao percorrer os versos e resenhas intimistas que venho cometendo nos últimos anos, admito, como não poderia deixar de ser, que sentimentos negativos como mágoa, revolta, inconformismo, frequentemente se sobrepõem ao lirismo que deveria inspirar. Mas não vou me desculpar por coisas que vivi, que senti, e talvez nunca deixe de sentir. Porque como bem disse Borges, a poesia não é menos misteriosa e incidental que os outros elementos do orbe. Com a diferença de que nela, a emoção paira acima da precisão e do próprio julgamento.

Ordenar esses escritos de modo a que não soem como um amontoado de desabafos, desagravos ou abstrações inúteis, nunca chegou a ser minha preocupação. 

Porque são exatamente o que são. 



 



quinta-feira, 15 de outubro de 2020


                           as provações nunca acabam






Quando pensamos que não temos

mais nada à perder, 

que a vida já nos tomou e castigou 

o que podia,

eis que sempre algo mais se quebra, se perde.


O prazer acaba, 

a gente sobrevive à tudo,

mas o preço sempre é alto.

A competição é dura, as provações

nunca acabam.

Os mais corajosos sofrem calados.

Os mais desesperados desertam.

Ninguém pode recrimina-los.

Cada um carrega 

a dor 

que é capaz de suportar.







 





Às vezes me pergunto em que momento,

em qual alvorecer,

os lobos devoraram os meus despojos.


 



                      


                    sumiço



Fim de carreira, é o seguinte : 

você pode não atender o interfone, 

não responder no wats ap, sumir por quatro 

ou cinco dias, 

e ninguém sentirá sua falta.




                 

                                                  um amor maior que o meu

  


     



Os dias que passam sem deixar vestígios,

pairam como fugazes reflexos 

das coisas que não duraram.

A carne esquecida das venturas e prazeres, 

entretida no inútil engenho de dar sentido 

ao que o fado ou os astros concedem.

Em cada arabesco do caótico caleidoscópio da vida,

o pesar

pelas coisas

que ignoramos e nos ignoram. 

Os amigos, os amores sem rostos, 

meu antigo eu está morto, ou quase. 

Na dissolução dos antigos elos, 

posso ser qualquer coisa. 

Um pária, ou devoto

de uma santa causa.

Por isso escrevo.

Para isso rezo.

Para que o amor de Deus seja melhor 

que o meu.

Um amor que não só conforte, mas cure.



















 

segunda-feira, 12 de outubro de 2020



                           de mal a pior




É duro ver 

que as coisas 

não mudam.

Que as pessoas não mudam.

A política imunda não muda.


Tudo indo de mal a pior.

A gente não controla mais nada.

A economia na mão de quem

não tem nada a perder.

A educação dos filhos na mão

de influenciadores idiotas.

O amor precificado.


Você só vale pelo que tem,

pelo que pode proporcionar.

A juventude arruinada pelas drogas,

chafurdando em valores fúteis. 

A cultura do lixo "bombando".

Mozart hoje em dia morreria de fome.

Shakespeare teria que mudar o estilo,

escrever mais simples.

Pois quem manda no pedaço é...Paulo Coelho.

O que vende é Cinquenta Tons de Cinza, 

Harry Potter.


Certo está o velho safado do Bukowski

quando diz que 

"não há nada para discutir.

Não há nada para lembrar.

Não há nada para esquecer.

Alguns acreditam na possibilidade

de que Deus ajude. 

Outros encaram de frente.

E à saúde destes eu bebo

esta noite."

Eu idem.



                                                   
                                  ser feliz



Ser feliz é tudo o que se quer.

Sendo que normalmente já somos 

ou temos motivos de sobra para ser. 

Sem perceber, sem valorizar.

Começando pelas coisas mais simples. 

Como ter uma vida normal.


Ser feliz é tão simples. 

A rigor, basta não complicar

o que já é naturalmente complicado.

Atentar para a beleza que nos cerca, 

as dádivas, quase sempre gratuitas,

e as mais gratificantes.


No entanto, não fomos feitos para a felicidade. 

A vida nos impõe sua tarefa mágica 

em infinitas provações.

Sob o jugo da perpétua lei de causas e efeitos. 

Que tece e destece o destino.

Cada instante pode ser o primeiro e o último. 


No tempo, que é de um e de todos, como diz Borges,

as vigílias humanas engendram artifícios 

em que o céu e o inferno se locupletam. 

Bem-aventurados os que conseguem ser feliz 

sem precisar de uma coroa de espinho.




















  







 


                                                                                   enganos



 

Quisera ter olhos para ver 

além da dúvida e do diálogo.

Ver além daquilo que vejo e não vejo.

No ensejo da felicidade que não tive,

e que agora sonho que tive.

Naquilo que flui em curso misterioso.

À guisa de lembranças triviais e sagradas 

que à realidade devastada se sobrepõe.

Minha cegueira é cárcere e nostalgia

que se eludem, na espera inútil

daquilo que não tive, e nem terei.


Ah, os enganos. 

Feitos de ecos, sonhos, coisas secretas

que meus olhos não veem. 

Talvez, por preferir o engano

de me deixar enganar

que quem mais amo,

desse amor não é digno.






domingo, 11 de outubro de 2020




                                           carma


  



  

Sou como uma velha espada,

à espera da derradeira batalha.

Elude-se em mim a promessa de que basta

arrepender-se para ser perdoado.

O que não é garantia de impunidade. 

A prestação de contas

faz o carma que cada um carrega.

Se desta ou de outras vidas, eis o mistério 

que leva os santos à fogueira.






 

 

sábado, 10 de outubro de 2020



                                    FÁBULAS






"E conhecereis a verdade, 

e a verdade vos libertará." (João 8:32)


Resta saber qual verdade.

A de Deus ou a dos homens ?

Ora, da soma de todas as coisas, pouco ou quase nada vislumbramos.

O saber que perscruta o tempo e plasma 

os sonhos, é de metal ou pergaminho.

Tudo que nos é levado a acreditar

não passam de fábulas,

conceitos e fundamentos que fogem

a nossos parcos conhecimentos. 

Que o sol brilha exatamente do mesmo jeito

há quatro bilhões e meio de anos ?

Que Deus criou um universo nem começo nem fim ?

E o mais incrível : que se preocupa comigo ? 

Com cada um de nós ? 


Nunca saberemos qual a verdade,

quem fala a verdade.

Criamos os mitos e os ritos, e os destruímos.

A vil palavra se presta à tudo.

Ao próprio paradoxo de um formidável processo

civilizatório, 

consagrado à mentira, as traições. 

Da cicuta de Sócrates ao beijo de Judas em Cristo,

erigimos e renegamos nossa fé 

antes mesmo de o galo cantar três vezes.

 

Em atos, pensamentos, ninguém foge à dubiedade

do livre-arbítrio,

que nos dá a terrível potestade 

de escolher o mal.

A verdade morreu.

Aliás, nunca existiu.

Tudo se insere nas gongóricas mitologias, 

como o fio que Ariadne 

pôs nas mãos de Teseu, 

para que não se perdesse no labirinto.

Porque tudo se perde. 

Tudo é circunstancial. 

Estamos sempre querendo livrar a cara,

enganar, ludibriar, tirar proveito. 

Na vida envolta em metáforas, em que

sinas e reveses se misturam,

nada nos afeta mais do que a traição

daqueles que mais amamos.

Mas não obstante o horror do ciclo natural 

das coisas,

a rosa em outra rosa se transforma.

Na dor, nos arrependimentos,

no olvido,

o passado é o barro com a qual o presente

moldamos.

Não há razão para que dos erros passados

continuemos escravos. 

Desde que mudado, 

não sendo mais o mesmo que errou.


À luz da pristina ciência, não passamos 

de um amontoado de pó.

Coube-nos, por sorte, o dom do raciocínio.

E viver sob a liberalidade de uma doutrina de perdão 

que  se dispõe a anular o passado.

À invenção de fábulas que conjugam os enigmas

da catarse humana, 

cujas palavras mentirosas e pactos rompidos 

alimentam o ciclo interminável de desatinos  

que nos condena à infâmia.




 


 




  










 

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