domingo, 29 de agosto de 2021


                        a ciranda dos loucos






A vida se refaz, cantando suas dores insepultas. 

Aqui e ali, o baldo gozo de sonhos dispersos.

Vago canto de súplicas e imarcescíveis sevícias.

Redutos de ódio profanam o Islã.

O lixo predatório inunda a terra devastada.

Crianças sem futuro herdam o mundo despetalado.

Roem as côdeas de indormidas certezas.

Na ciranda dos loucos que governa a humanidade,

o Bem e o Mal já não distinguem

o certo e o errado.





 




segunda-feira, 23 de agosto de 2021



                                   O SILÊNCIO DOS AUSENTES



 


Às vezes penso como seria ouvir 

o silêncio dos ausentes. 

Ceder à tentação de matar alguém.

Como um soldado que não pode 

senão matar ou morrer.

Como seria continuar, a despeito de já não ter 

para onde ir, 

por quê ir.

Acreditar, mesmo em permanente desolação, 

a vida imperceptível se desintegrando

em promontórios dolentes. 

Pensando, lembrando, atormentado como um místico 

diante de sensações proibidas.

Ah, o silêncio dos ausentes, 

a mágoa enrustida, 

a revolta entalada, por um ou outro motivo retida,

como âncoras poderosas para sempre submersas. 

Mas sou covarde. Me contento em não saber.

Para não mais sofrer.

Como a noite que esconde as estrelas, 

me exilo nesse silêncio 

que liga o inferno ao paraíso.





   


domingo, 22 de agosto de 2021



                            porque eu não quero um cachorro





1. Primeiramente, porque não tenho quintal. 


2. Não quero chegar ao ponto de achar que a convivência

com os bichinhos é melhor que a humana. O que, aliás, já acho.


3. Acho cruel condenar os bichos a vida doméstica de hoje em 

dia. Você ia querer viver a base de ração, que cortassem suas bolas ?


4. Não é bem recolhendo bosta de cachorro que eu quero para

o final da minha vida.


5. Não acredito nesse papo de que o cão é o melhor amigo

do homem. Deixa um pittbul ou rottweiler uma semana sem 

comer, para ver o que acontece.


6. Não quero ser visto como o dono daquele cachorro chato, que

late o tempo inteiro, faz estardalhaço quando vê outro dog, 

irritante como aquelas crianças mimadas que só os pais acham

uma graça.


7. Ninguém vai me ver levando cachorro para passear em bicicleta,

moto, patinete, com o dito-cujo no colo enquanto dirige, 

ou arrastando o bicho resfolegante em corridas, muito menos 

catando-lhe as pulgas enquanto vê tv, ou deixando-o

lamber a boca, depois de cheirar o fiofó de outros coleguinhas, 

lamber as partes, e sabe-se lá o que mais.

Eu, hein? Tô fora !


Notem que nem falei dos gastos, nas implicações de cunho 

emocional, nas limitações ( e obrigações ) 

que ter um bicho em casa impõe. Mas também sei que nada disso 

supera o prazer,  a alegria, em suma, as compensações que

convivência com esses seres especiais nos trazem. 

E não só de cães e gatos. Todo animal é capaz de não só 

corresponder, como retribuir o afeto que lhe é dado. 

Às vezes de forma até mais marcante que a proporcionada 

por um ser humano.

Como me aconteceu recentemente, com um pardalzinho que meu

filho pequeno recolheu da rua, recém-nascido, e que contrariando

todas as probabilidades, não só sobreviveu como fez parte de nossa

família por quase quatro anos. 

Sem precisar de gaiola, livre, feliz, sujando, cagando por tudo, 

como é típico deles, mas enchendo de amor nossa casa 

como só os seres destituídos de maldade 

conseguem. 




 







                         Não é lindo, o amor ?





Amar é um troço tão louco que às vezes 

você tem mil razões para ir embora,

e uma só para ficar.

E você fica.

"Ele não deixa faltar nada em casa", diz ela.

"Ela é uma boa mãe", diz ele.

Não é lindo o amor ?



                            Por outro lado...


Nada mais constrangedor do que ver um ex-amor 

com os olhos normais, ou seja, despido de truques e

disfarces.

Inevitável não se perguntar, como fui amar

essa criatura um dia ? 


                       





 

sexta-feira, 20 de agosto de 2021


                             lucidez



 



Com lucidez tremenda,

fez que não viu

e seguiu em frente.


                           Morto não paga.

                           Mas também não recebe.


A paz que me falta... 

que não seja póstuma.

 



                Como diria Quintana, só o perdido é para sempre.

                        

                       








                     roteiros




É sempre o indizível que deslinda

a paz do meu tormento.

No pedestal do tempo, os roteiros retorcidos

se ajustam ao penhor deste desterro.

Para que eu possa seguir além dos enganos.

Sem o repertório de máscaras da trama 

que ora finda.


 




                           Influxos





É preciso coragem para viver.

A vertiginosa pululação do dramatis personae

se embacia de fastio. 

No ar, o voo pesado de abutres gordos paira como

metáfora recorrente.

Líquido e certo que um dia a catástrofe sobrevêm.

Os demiurgos amassam as premonições, enquanto

o crepúsculo esculpe estátuas.

Noite após noite, o homem se refaz sonhando-se adormecido.

Compreende que o engenho de modelar a matéria requer

velhos olhos.

Esgotados os votos aos numes terrestres, desperta da intolerável

lucidez da insônia.

Implora por desconhecido socorro.

Um múltiplo deus se revela e preconiza que uma vez

cumprido os ritos da dor,  gradualmente, 

habituar-se-à a realidade dos heresiarcas e dos crucificados. 

E vai cuspir seus surdos apelos,

como se embandeirasse um cume longínquo.

Não menos vil, porém, escudado por gnósticas cosmogonias,

descobre que a bem-aventurança (assim como o bem)

é um atributo que não deve ser usurpado por anátemas

sem provas.

Em conjecturas que se esgotam no ditame de leis

labirínticas, atreladas ao acaso.

Sob o influxo de deuses degenerados.




 

 

 

domingo, 15 de agosto de 2021




                      o timoneiro





Ensaio hoje o meu schwanengesang.

Áugure da efemeridade das coisas.

Na plenitude e esgar dos sonhos. 

Paradoxalmente, nunca tão só.

No epílogo da rematada jornada.

Porém, com largas compensações.

Nunca tão lúcido.

Nunca tão despojado dos entulhos que acumulamos

 ao longo da vida. 


Acima de tudo, o coração alto e doce impera.

Uma resignação madura bate a terra dura

com o casco das coisas humildes.

Fiquei muito aquém do que podia, 

mas não naufraguei.

Tendo Deus como timoneiro, "não sou eu quem 

me navega,

quem me navega é o mar."

 

(O Timoneiro/Paulinho da Viola)






quinta-feira, 12 de agosto de 2021




            o cotidiano báratro



Há abundância de mentira e fome no mundo.

De solidão e arrependimento.

Tiranos no poder, como sempre.

Pranto de crianças em todo canto.

Há abismos, súplicas, vociferações por toda parte. 

Ausências, sortilégios, suicídios entretecem 

o cotidiano báratro.

Bárbaros dirigem automóveis, mimam os filhos,

paparicam os cães de estimação, 

e põem os pais no asilo.

O Inferno de Dante é aqui.

 










 

quarta-feira, 11 de agosto de 2021



                      hora marcada



Sou um homem já sem venturas e pesares.

Que espera e sonha

Com flores de cera sobre o mármore.

O campo está arado e as uvas, maduras.

A eternidade me espera na encruzilhada das estrelas.

Sob o elmo quimérico e irascível, o eterno inimigo

Do absoluto mede o tempo.

Estamos em paz : na desabitada vida, 

Anseio pela hora marcada. 





 

quinta-feira, 5 de agosto de 2021



peçonha







Não é a palavra ferina

que provoca as piores feridas.

Mais perigosos são os que posam de honestos,

que ocultam sua peçonha 

em virtuosos gestos.


  

quarta-feira, 4 de agosto de 2021





                  desejos





Tudo o que eu quero da vida

É o que a vida já não pode dar

Os arroubos da juventude

Os amores imaturos

E até os desejos impuros

Principalmente estes.



 




De dia procuro

De noite espero

Resta saber 

o que eu quero.





 

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