domingo, 30 de abril de 2023


                                a utopia das utopias





Não quero ser feliz.

Ser feliz é muito complicado.

Requer atributos que não tenho.

Subornar a consciência.

Mentir para os outros, para si mesmo.

Viver de subterfúgios e paliativos para fugir

a realidade que agride.


Ser feliz exige condições e forças anormais.

É preciso parar de se enganar, de viver de ilusões.

Abrir mão do supérfluo para se contentar

com o que importa. 

É deixar de querer mudar as coisas que não pode mudar.

Entender que os conflitos podem ser benéficos, para

te desafiar e crescer.

Ser feliz é parar de levar tudo tão à sério 

e aprender a rir de si mesmo.

Não ser dependente do amor e do sexo, entender que não

somos esse corpo, e sim a alma que nele habita.


Ser feliz não é para qualquer um. 

Começa por parar de reclamar e saber agradecer.

Não querer controlar tudo, e deixar fluir como um rio.

É entender que a vida não dá o que você quer,

mas o que precisa para evoluir.

Ser feliz é entender que "a vida te quebra em tanta partes

quanto necessárias, para que a luz penetre em ti."

Que a vida "te humilha e te derrota de novo e de novo,

até você deixar seu ego morrer", como ensina Hellinger*.


Não preciso ser feliz.

Não essa felicidade baça e condicionada por posses 

e bens materiais.

Atrelada a relações que podam suas asas e cortam

suas raízes, impedindo que o seu melhor aflore.

Não essa felicidade artificial que se vê por aí.

Não àquilo que tem preço, mas o que tem valor.

Não o amor precificado, mas o dado.

Ser feliz é a utopia das utopias. 

Invenção do mundo mercantilista, em que se sonha

com bens e grandeza, ao invés de aprender 

a viver e servir.


Não, não quero ser feliz. 

Ser feliz é um luxo que dispenso.

Troco todos os seus apanágios por aclarar a mente

à luz dos mistérios que os dias encandeiam.

O tempo que se esvai levanta o muro da solicitude 

que me guia.

Da forma mais fácil e segura que a impostura 

de ser feliz à qualquer custo.


* Bert Hellinger, escritor e psicoterapeuta alemão de 93 anos, uma das vozes mais

brilhantes do pensamento contemporâneo. 











 
















 

sábado, 29 de abril de 2023




                        meu guapo inesquecível 



A quién puedo preguntar qué vine a hacer

en este mundo ? (Pablo Neruda)


Acordei sobressaltado, com o telefone tocando. Às 4 da matina, boa coisa não pode ser.

- Alô !

- E aí, gringo. Tudo bem contigo ?

- Como ? Quem tá falando ?

- Não tá reconhecendo minha voz ? 

- Não estou não, isso lá é hora de brincar de adivinhação ? Quem tá falando ?

- É o Vado, pô !

- Vado ? Mas que Vado ? Não conheço nenhum Vado.

- Que isso, gringo. Tá certo que faz um tempão que a gente não se fala, mas vai dizer que não lembra mais do seu guapo do Clube da Ponta ? Do Saldanha ?

- Que palhaçada é essa, tá louco, cara ? Você já morreu, quer dizer, o

Vado que conheci morreu tem uns cinco anos. Fui no enterro dele.

- Opa ! Foi não, não vi você lá, gringo.

- Tá certo, eu só soube que ele tinha morrido semanas depois. Mas vamos acabar com essa brincadeira sem graça, qual a sua, hein ?

- Caramba, tu ainda tá duvidando ? Então pergunta aí qualquer coisa

que a gente passou, dos treinos na praia, das brincadeiras no sítio do

Nestor.

- Meu Deus, não acredito nisso... Mas tá bom, já perdi o sono mesmo. Deixa ver... Ah, diz aí quem foi o cara que te fez quatro gols de falta num jogo no Saldanha ? Quem foi ?

- Pô, sacanagem você lembrar logo disso. Tantas defesas memoráveis e você me faz uma pergunta dessas. Foi o Mario Papeta. Nunca vi ninguém chutar daquele jeito. E olha que não falhei em nenhum deles...

- ...

- Alô, gringo, ainda tá aí ? Alô !

- Eu, porra...

- Acredita agora ?

- Como pode isso ? Só pode ser alguma pegadinha.

- Que pegadinha, gringo. E quem mais te chamava assim ? Eu sei que é difícil acreditar, mas sou eu mesmo. Tu sabe que eu sempre gostei muito de ti, e como surgiu uma brecha aqui, resolvi aproveitar. Tô te vendo meio desanimado, desiludido com a vida, aí pensei, preciso dar uma força para meu camarada.

- Isso é loucura, não pode estar acontecendo. Mas o que está errado comigo ?

- Vejo você muito isolado, descrente de tudo, até deixou de jogar bola. Tem que aproveitar a vida, irmão, dar valor as coisas, enquanto é tempo. Veja o que aconteceu comigo, com essa doença que apareceu de repente, com tanta coisa ainda pela frente.

- Tem razão, mas tem horas que a gente baqueia, sabe como é, sacanagens...

- Ah, isso sempre tem. Não tem escapatória, o ser humano é complicado. A vida é difícil. Mas não pode levar a ferro e fogo. Relaxa, faz a tua parte que as coisas se ajeitam.

- Se fosse simples assim...

- Verdade, não é fácil manter a cabeça no lugar, segurar a barra. Mas procura ver o lado bom, você é um cara do bem, por isso fiz questão de falar contigo. Pra você saber que no fim tudo acabará bem.

- O fim, como ? Por acaso o meu fim está próximo ?

- KKKKK... Fica tranquilo, gringo, tua hora ainda não chegou. Falando nisso, eu tô na minha, preciso desligar antes que deem por minha falta. Além disso, tá na hora da peladinha...

- Peladinha ? Aí tem bola também ? A essa hora da madrugada ?

- Aqui não tem noite, é sempre dia de sol, céu azul...

- Que beleza. Mas me diz aí, vai jogar de quê ?

- Goleiro, cara, goleiro. Eles não me deixam jogar na linha.

- Ahn...

- Eles sabem que eu desiquilibro.

Aí eu tive certeza, com essa humildade toda só podia ser o meu saudoso amigo Oswaldo Garcia Filho, o Vado, que se foi tão prematuramente, e que inspirou essa pequena e singela homenagem.


* Escrevi essa crônica, suprimido alguns trechos sobre futebol, para a coluna Jogo Aberto, do Jornal A Tribuna, da qual fui colaborador entre 1980 e 1985.  





terça-feira, 25 de abril de 2023


                       o que eu queria



Queria conhecer alguém que me mostrasse 

as coisas boas que não consigo ver.


Queria ver o amanhecer com os olhos inocentes de antigamente.


Queria colher as flores da minha sepultura.


Queria conhecer a linguagem da luz, ser surpreendido

por um milagre. Um único e indiscutível milagre.


Queria não sentir falta do que me faz falta.


Queria redescobrir a tessitura das amizades sinceras. 


Queria abraçar meu pai mais uma vez. Mesmo que em sonho.


Queria ter amado mais e melhor.


Queria ter sido melhor do que fui, ou sou, mas ainda

estou batalhando para isso.


Queria controlar o vaivém nocivo dos impulsos.


Queria ver meu país livre da corrupção e da tirania.


Queria poder corresponder as expectativas

de quem ainda gosta e acredita em mim.


Queria que meu coração arbitrário encontrasse pousada, 

criasse juízo.


Queria não me arrepender de ter apostado todas minhas fichas

em coisas que acabaram não dando certo : o futebol,

o jornalismo, minha finada ex-amada.


Queria que o que escrevo tenha algum mérito, que permaneça

depois que eu me for.


Queria sentir o aroma feliz de uma torta de maçã, numa

tarde chuvosa.


Queria contemplar-me com os olhos de quem se perdoou.


Queria me penitenciar com os amigos dos quais me afastei,

sem qualquer razão plausível.


Queria não ser o síndico da minha massa falida (assim como

Paulo Mendes Campos).


Queria inventar um jeito de ser feliz, sem perder o senso

da realidade.


Queria pensar mais com a razão do que com  o coração. 


Queria perdoar, do fundo do coração, a traição que quase

me destruiu.


Queria que espalhassem minhas cinzas num campo de girassóis. 


Queria não me arrepender de amar, de ter amado.


Queria não ser um estorvo, não ser motivo de pena ou chacota,

o pesadelo de todo velho.


Queria que a mentira e a impostura fossem banidas na Criação. 


Queria acreditar em você, que diz que me ama.












 






 



 




 





  

 


                       decreto divino



Rebanhos. Seremos, de fato, um grande rebanho ?

Rebanhos de gado, rebanhos de asnos, conforme a tosca

retórica da militância política nativa.

Todos irremediavelmente tangidos pela mídia nefasta,

por governantes inescrupulosos, mentores de araque.


Divergentes caminhos de rebanhos seculares nos precedem.

Rebanhos que guerrearam, edificaram impérios,

moldaram países, fazem o trabalho sujo.

Somos filhos de povos escravizados,

de negros arrancados de suas tribos seculares,

de populações manipuladas,

indígenas catequizados na marra.

Rebanhos que se formam e se dissolvem sob o tacão

dos poderosos, 

de conquistadores impiedosos,

pela cruz de Cristo, pela espada do Alcorão,

por bem ou por mal.


Porquanto os rebanhos pastam,

amam,  acoimados em sua inútil rebeldia,

isentos de culpa porém punidos, 

imolados.

Por decreto divino.










                             ora, direis



A saga humana escalavra as entranhas do mundo.

Rompe a casca dura.

Perpassa a agreste inocência.

Tece secretas florescências.

De desditas se alimenta.

Compadecendo-se em miserável ternura.


À pantomina dos dramas evoca palavras de olvido.

Aprende-se a duvidar de tudo

para que o fardo alheio não nos pese.

Dores de toda espécie nos ladeiam.

As injustiças, as privações, os assassinatos

não nos dizem respeito.

Até chegar o nosso dia de padecer à revelia.

Imerecidamente, ora, direis. 

Mas quem se importa ?




  


                           amor ordinário ( à moda Bukowski)



O amor ordinário é como uma escova

de dentes gasta.

É como comprar um carro usado

com o motor fundido.

É comprar um bilhete de loteria

que já correu.

É pegar o ônibus errado e não ter

grana para voltar.

É cagar na cueca pensando ser um peido.


O amor ordinário é como um vício.

Você sabe que faz mal

mas não consegue largar.

É uma piada pior que a vida

mas não há nada melhor.

Não ter certeza de nada, nada esperar

a não ser viver o momento.

Sem falsas ilusões, portanto. 

O que pode ser melhor ?


Amor ordinário, sem futuro, atrelado

ao passado que sempre volta,

apegar-se, nem pensar.

Este é o pacto.

Nada de promessas, cobranças, compromissos.

Coisa de segunda mão, sem garantia.


O que tenho a oferecer é insuficiente.

O que tens a dar, agarro com unhas e dentes.

É pouco, mas não posso querer mais.

O amor ordinário não se submete,

não aceita imposições.

É o que é.

Intangível, postiço.

De tão ordinário, sujeito a acabar

com um simples bloqueio no watts ap.



segunda-feira, 24 de abril de 2023



                        em causa própria






Ralei muito para chegar onde estou,

nos arrabaldes de mim mesmo.

Rodei, rodopiei, cai e levantei

nem sei quantas vezes.

Me jacto em dizer : nada nem ninguém

me derrubou.

Nem as falsetas da vida, nem a bola nas costas

da mulher amada.

Penei, é claro, cheguei às vias do desespero,

mas uma força interior inexplicável sempre

esteve comigo.

Uma força interior semelhante a de Leon Tolstói, 

que fugiu de casa aos 80 anos

para viver com uma rapariga de 22 ( mentira, só estou

legislando em causa própria, como manda 

nossa infame judiciário).










domingo, 23 de abril de 2023


                              a vida é agora 





Por que tanta demora ?

Assim vai perder a hora.

O tempo não espera.

A fruta apodrece,

o rio seca.

O amor murcha. 

Por que tanta demora

para entender 

que a vida é agora ?





                       o homem que não fui



Sou um homem que sonha outro homem.

O homem que não fui.

O homem que queriam que eu fosse

e não consegui.

Sou o homem que sonham por mim. 




sábado, 22 de abril de 2023



            cão sem dono



Um cão magro na rua

passa sem olhar o semáforo.

Talvez já cansado de viver.


Assim como eu, anda 

pra lá e pra cá,

sem que ninguém ligue.


Eu ali, esperando o ônibus 

na fria garoa, me senti como

aquele cão sem dono.





 



                    a mulher que passa





Como Vinicius, eu quero a mulher que passa.


Como todo poeta, faço versos para a mulher

que não é minha.


Como um louco, quero amar todas as mulheres do mundo.


Como um simples mortal, de tanto querer a todas,

acabo sem nenhuma.



sexta-feira, 21 de abril de 2023




                 a luta



A mudez do tempo, monumento de sonhos desfeitos, 

cinzela olvidos e ledos enganos.

Acorrentado à vida, o corpo pastoreia

incontornáveis esperanças e lutas desesperadas.

Entre a luz e a treva, entre a cruz e a espada, 

o acaso algema e liberta, para converter a animalidade

em humanas façanhas.


Fatigante é o exercício de viver.

Oscilando entre ferir ou ser ferido,

quase sempre algoz de si mesmo, o tormento 

não tem fim.

Frente à frente com o carrasco, sem entender

a sentença, sem perceber 

os limites do permitido, o homem

luta para não destruir-se à toa.


 

 











 



                  o amor possível





É possível que tu me ames.

É possível que eu te ame.

Ambos, lutando contra esse querer

que nos prende

na jaula que nos une.


Sim, é possível que nos amemos.

Mesmo sabendo que não há futuro

para esse amor feito de carência e desespero.

Que nos faz tão diferentes e tão iguais.

Sem ninguém senão nós mesmos

para cuidar um do outro.


Não é lindo e sequer tranquilo

esse amor libertino,

mas é o único possível.

A um só tempo acre e doce.

Enfermo e sem rumo.

Que vive de tudo que foi

sem nunca ter sido.









  










segunda-feira, 17 de abril de 2023



                  gato escaldado





Já não canto as dores que me viraram do avesso.

Já não temo ficar sozinho, porque foi sozinho 

que me encontrei.

Já não espero mais nada que não seja factível.

Se não descrente do amor,

mais arisco do que gato escaldado.



 



Há sempre respostas.

Sendo o silêncio, o vazio,

e o nada

a resposta para tudo.


 




Está à vista de todos, mas poucos repararão

nas brancas nuvens que se desprendem do céu

e deitam-se nas encostas das montanhas,

como grandes almofadas,

enchendo de beleza a manhã radiosa

da vida contemplativa. 



sexta-feira, 14 de abril de 2023



                  o Cristo crucificado





Sou um cego em Malta.

Um refugiado num campo de concentração da Malásia.

Um clandestino num cargueiro panamenho.

Um  mercenário à serviço da Rússia na guerra da Ucrânia.

Sou um latino-americano arriscando tudo para entrar nos EUA.

Sou um negro trucidado pela polícia norte-americana.

Sou um homossexual no Islã.

Sou um doente mental,

cigano, indígena, viciado, analfabeto,

sem teto, pária, ralé.

Sou faxineiro, lixeiro, serviçal,

mão de obra escrava.

Sou bandido, venal, vendido,

traidor da pátria, infiel, mau caráter.

Sou traficante, meliante, trombadinha, MC,

magistrado, ministro da suprema corte,

político profissional, presidente...


Eu sou tudo e nada.

Sou tudo que presta e não presta.

Sou bom e mau.

Sou o sal da terra.

O pão que o diabo amassou.

Sou seu irmão.

Sou filho de Deus e discípulo do demo.

Sou o certo e o errado.

Sou o que deu certo e o que deu errado.

O cristal intocado, o muro mijado, 

a ponte, o pouso, o porto de chegada e de partida.

Sou o morto esquecido, o suicida que mataram.

Sou o sangue espesso da castidade, 

o braço da discórdia. A incessante covardia.

Sou o Cristo crucificado.





quarta-feira, 12 de abril de 2023



                                SE...

                 

               Ilustração reproduzida do google

Se a carne é fraca

e o crime compensa.


Se a mentira impera

e o mal prevalece.


Se os valores desandam

e o dinheiro é quem manda.


Se até o amor anda na corda bamba

e a rotina é de tiro, porrada e bomba.


Se ninguém se importa

se a roda é torta e Inês é morta.


Se nada dura e o fim

de todo mundo é na sepultura.


Se nada acontece, 

e o ímpeto fenece.


Se nossa injustiça capenga 

mais parece uma quenga.


Se a polícia prende 

e leis caducas soltam.


Se até a carne mais rija

um dia acaba em pelanca.


Se entrementes é um palavrão

em qualquer texto que se preze.


Se no Brasil o salafrário

tem livre acesso ao erário.


Se os conflitos sem fim

engordam os abutres.


Se quanto mais eu rezo,

mais assombração me aparece (dito popular).


Si el azul es un ensueño,

qué será de la inocencia ?









 




















 

terça-feira, 11 de abril de 2023





                 um novo modo de viver






Na contramão do passado, espanto o desencanto 

inventando um novo modo de viver.

Roendo o osso das banalidades, feito um cão esfomeado.


Busco, mas não acho.

Náufrago no mar dos Sargaços.


Sonho que acordei

da vida em que morri.


Só quem nada possui

se contenta com pouco.


De retrocesso em retrocesso,

um dia o Brasil ainda vai dar certo.


Quem parte

leva um pedaço de alguém.


Gato ou cão ?

Pelo sim, pelo não

fico com meu violão.


Bebo, fumo, cheiro.

Nada como ter um alter ego.


A festa acabou.

E agora, José ?

Chamo o Uber ou vai a pé ?


Essa velha amendoeira

no quintal do vizinho

é um puxadinho de morcegos.


A se crer na lei do retorno,

como dormir em paz ?


Alienígenas creem em Deus,

ou serão eles os "deuses" ?


Ah, quem me dera

esquecer o futuro.


Todo ideograma

tem algo de paliativo.


O que é mais inútil ?

Boas intenções ou arrependimento ?


Pesadelo de anacoreta

é sonhar com buceta.


Jesus Cristo ou Mefhisto ?

A humanidade não se decide.

Muitos ainda escolhem Barrabás (ou o lularápio).


E se a terra de repente começasse a girar ao contrário ?

E o tempo retrocedesse. E a fascinante fábula

de Benjamin Button (obra-prima de Scott Fitzgerald)

se tornasse realidade ? Viver a vida de trás para frente,

refazer a jornada, reaver a inocência perdida.

Do jeito que era para ter sido.


No dizer de uma amiga, toda mulher sonha ser 

estuprada. 

Desde que pudesse escolher por quem...


O arrependimento não é garantia

de que não faríamos tudo outra vez. 

Talvez pior ainda.


Essa sensação de que as coisas vão de mal a pior,

não será porque só as coisas ruins repercutem ?


Espécime rara de moça de família acaba de ser 

capturada. Para estudos.


Senso comum : se não saiu na mídia,

se não postou nas redes sociais,

não aconteceu.


O amor que me devora

chegou de mansinho,

como não quer nada.

Foi ficando, ficando,

até fazer morada.


3 da madrugada é a hora crucial

de transpor o portal

em que o real e o sobrenatural 

se entressonham.


Os bois ruminam, os peixes nadam,

mamíferos, aves, insetos

só fazem hora

até que o bicho-homem os devorem.


Não há espaço para o amor

quando há outros interesses em jogo.


O excesso de consciência é como o excesso

de luz. Ofusca. (Pinçado em crônica de Paulo Mendes Campos)


O que a vida me nega,

a imaginação provê à larga. 
















 







                     o matadouro de Deus



Acordes sinistros povoam a realidade de lágrimas

e tristezas. 

Loucuras sem limites destroçam lares, cidades, nações.

O sangue derramado inunda a eternidade submersa no tempo.

Flores amargas se esparramam pelas incontáveis

campas do mundo. 

Não só seres humanos mas toda a Criação, dizimados

no grande matadouro de Deus.

A quem, ironicamente, apelamos para livrar-nos

de dores para as quais não há cura.




sábado, 8 de abril de 2023



                   hoje eu sei quem sou





Hoje eu sei quem sou.

Sei o poder imenso que mora em mim.

Minha melhor versão tem mandíbulas de leão,

garras de águia, coração de gente.

Me encontrei quando me perdi.

As diletas circunstâncias devo tudo que tenho.

As coisas não ensinadas devo tudo o que sei.

Sem carência de nada, deixei o ontem 

num recanto da memória.

Sem mapas, rotas, planos, vivo intensamente 

o agora.

Prelibando o futuro ontológico.

Carpindo cada dia como se fosse o último.

Incógnito, devoro um pedaço da minha carne

para não depender de ninguém.









 


                         coisas que não tem nome

                                 




No descomeço de tudo, coisas que não tem nome

se apropriam do acaso para traçar o destino traiçoeiro.

O vazio preenche os espaços rompendo muralhas,

arrefecendo ímpetos selvagens.

O coração estranho subjugado

pela visão mítica da realidade simbólica.


Parei de me enganar. O tempo de ser feliz

é escasso.

Somos escravos das aparências.

Laços se desfazem à noite, fragilizados 

pela inútil espera.

A consciência de silício incorpora os males

para superar as agruras.

Paixões fortuitas projetam dissabores orgânicos.

A compaixão releva os pecados que o amor

não perdoa.

O ardor sem contexto salva o mundo

da normalidade doentia.


 




             ecos 



Vasculhei as gavetas

Procurei nos quintais, nas grutas,

nos sótãos,

fotos, relicários, escritos,

ecos de dias distantes

de quando nada sabia da vida.

Obtuso. 

Feliz.



 




Nascemos, inocentes.

E logo nos vemos adestrados

sob normas idiotizantes. 





                          exorcismo



Na cama vazia

ainda sinto teu cheiro

de fêmea no cio.


Não há apego em nosso enleio.

Apenas desejo e sexo remunerado.

É assim que se exorciza

um amor não correspondido.




 

sexta-feira, 7 de abril de 2023


               

                                assalto simulado



                            


No epicentro do mundo, leis não escritas imperam.

Computadores decifram enigmas.

Pirâmides financeiras constroem e consomem

fortunas. 

Espertalhões amealham dinheiro que ninguém vê.

É o próprio assalto simulado.

No sobe-e-desce das bolsas,

a bolsa ou a vida ?





                acalanto do homem só




O que pode um homem esperar

do que ora sorri, ora dá nojo,

alheio ao propósito

da vaporosa vez do possível ?

O fardo tardo decomposto

adivinha faces de morrer.

Noturno e confidente.

Ao som remoto de aleluias eternas.


O que pode um homem saber

das vilipendiadas verdades

em que todas as mentiras se parecem ?

Por ventura, amar, não sabendo a quem amar,

sequer conhecer,

seres loucos e dissimulados,

que nunca falam a mesma linguagem ?

O que pode salvá-lo da flor-mulher-Capitu, 

de olhar oblíquo e dissimulado ?


O que pode um homem que não entende

as sutilezas dos cansaços e gestos filtrados

do grande e incorpóreo nada ? 

Perseguindo e perseguido pelo conhecimento 

que interroga a repartida orbe e maltrata a terra nua.

Sensações sem luz e caridade perseguem o

hermético lábio.

Consumido em clarões em susto, lumes de paixões

que ferem sem sonhar-se.


O que pode um homem fazer, ante o que 

se esconde nas frinchas do tempo ?

Na polpa do ser, mil máscaras se dispersam 

no sujo e esquecido repasto das coisas.

Ignoto, covarde como um desertor, não obstante,

irradiando surda sabedoria,

o que pode um homem só senão apegar-se

ao que não passa.

A morte que o procura.

Ao acalanto do desterro.

O cio, a vida, a poesia como 

fiel companhia. 





 



terça-feira, 4 de abril de 2023



                        a alegria do povo



Futebol é a alegria do povo.

Muito mais que um simples jogo.

É diversão, batalha estilizada, catarse.

Ludismo para todos os gostos e idades.


Futebol é paixão sem explicação.

Jogando ou assistindo, arrebata milhões.

Não discrimina raça, credo, nível social.

Nada pode ser mais democrático e radical.


Futebol é a alegria de ricos e de pobres.

Amor que não se cansa nem exaure.

Tudo o que mais se quer é a emoção

de soltar o grito de "é campeão!".





 

segunda-feira, 3 de abril de 2023


                                  LUXO





Luxo é poder desfrutar de seus dias

sem ter que dar satisfações a ninguém.



Luxo é poder gastar seu dinheiro do jeito

que quiser, sem ter que prestar contas ou se privar

do que lhe dá prazer.


Luxo é não ter hora para nada, não precisar dar expediente,

dispor do tempo para fazer o que gosta, ou simplesmente 

ficar à toa.


Luxo é poder ouvir as músicas que gosta, ler ou ver os filmes

de sua preferência, sem ninguém para torcer o nariz 

ou encher o saco.


Luxo é poder namorar, ficar, transar sempre que quiser,

e não necessariamente com a mesma pessoa.


Luxo é poder curtir a vida como bem lhe aprouver, 

viajar, festar, enlouquecer.


Mas luxo mesmo é ter alguém que o faça prescindir

disso tudo. Sem se sentir lesado.  



 






 

domingo, 2 de abril de 2023


                             no que eu creio





Já professei todas as crenças.

Já comunguei todos os credos.

Já frequentei todos os cultos, templos, sinagogas,

terreiros.

Já fiz promessas, votos, mandingas, macumba,

tomei banhos de ervas, 

fiz defumação, joguei - e ainda jogo - sal grosso pelos

cantos da casa.

Meditei no Tibete, peregrinei no Caminho de Compostela,

experimentei o espiritismo, o curandeismo, o satanismo,

tomei o Santo Daime em noite de lua cheia, 

Li e reli a Bíblia, folheei o Alcorão, o Talmud (muito maçante, não aguentei),

amei Lao-Tse, o Bhagavad Gita,

mas não me converti.

Não me convenci da verdade absoluto que todas crenças

e credos apregoam.

Muito menos do poder do pensamento positivo.

Por mim, misturaria tudo para extrair o sumo.

Ou simplesmente, ficar com o Deus de Spinoza. 
















                            para não passar vergonha



Meu poema está guardado.

Só não sei onde.

Tão bem escondido

Que temo não achar.


É um poema singelo.

Só não sei dizer se belo

Ou mais um simples libelo

Que ninguém vai querer ler.


Meu poema está guardado.

Para não passar vergonha

Melhor que fique por lá.






 

sábado, 1 de abril de 2023


                        sapiência



Quanto mais eu vivo,

mais eu desaprendo.


Quanto mais eu quero,

menos eu tenho.


Quanto mais eu sei,

mais eu erro.


Quanto mais eu penso,

mais me confundo.


Quanto mais eu vejo,

menos enxergo.


Quanto mais consciente,

menos exigente.










 



                   servidão



O caminho racional é infinito e melancólico.

Em busca da paz e da harmonia, a tentativa perene

de ser exalta, deprime, angustia.

Não importa viver, e sim compreender.

Não importa ser, e sim existir.

No caos infindável da vida, a polarização modula

o establishment de clichês e estereótipos primitivos.

A propaganda é a alma do negócio, como diria Goebbels.

Padrões desprovidos de sutilezas tolhem a liberdade.

O vislumbre do conhecimento troca o gozo pelo eletivo

senso da realidade.

A vida contemplativa é o Nirvana em que começamos

a viver quando morremos.

É trocar uma servidão por outra.














                                



                           samsara






Emoldure-se os dias luminosos.

Enalteça-se o maravilhoso conhecimento que se abre

como um sol dourado.

Louve-se o amor à moda antiga, a refletida escolha, 

a lúcida vontade.

Creia-se no espírito agregador, que cerca a vida

de finos cuidados.

Valorize-se os carinhos cansados, os agrados sonegados.

Preserve-se os inebriantes momentos, irremediavelmente

perdidos.

Detenha-se em cultivar a estranha felicidade da velhice.







                   Tao te King *




Sou bipolar, graças a Deus.

Sou e não sou, sendo.

Bipolar como o Cosmos e tudo que existe.

O positivo e o negativo.

O masculino e o feminino. 

O dia e a noite.

O yang e o yin.

O céu e o inferno.

O insondável é a essência de tudo.

O inominável é o Tao - a divindade transcendente

e inacessível ao nosso limitado conhecimento.


Sou bipolar no bom sentido.

Procurando mais "ser" do que "existir".

Mais ouvir do que falar.

Mais dar do que receber.

Mais amar do que ser amado.

Aprendi que em meio a tudo, um poder 

supremo prevalece.

Forças espirituais guiam nossos passos.

Nossos atos desencadeiam os fatos, bons e ruins.

Desentranham e mobilizam as energias formativas.


Como eu sei ?

Não sei, e ninguém sabe, a não ser intuitivamente.

Como os grandes iniciados. 

Mahatma Ghandi, Lao Tse, Jesus, Francisco de Assis, 

Descartes, Einstein...

Todos em perfeita sintonia com a Realidade Univérsiva,

que extrapola qualquer análise empírico-intelectual. 


O paradoxo sintetiza o conceito do monismo cósmico, 

que permeia o pensamento iluminado.

A mensagem de Cristo está repleta dessa sabedoria cósmica.

O paradoxo agrega todo o conhecimento básico, como sugere

Paulo de Tarso.

"Eu morro todos os dias, e por isso eu vivo", 

Só os mistérios do mundo espiritual dá sentido as coisas.

Mundo que se auto-regula, que abarca as grandes verdades

e a solução de todos os problemas.

E cuja essência é o famoso wu-wei que embasa toda milenar

filosofia chinesa.

O misterioso "não fazer", "não interferir", deixar o barco correr.

"O Tao não age. E por este não agir, tudo acontece.

Onde não há desejos, reina a paz. E onde há paz, o Universo

se regula por ai mesmo". (Lao-tse)  


* Baseado no livro Tao te King, de Lao-Tse, tradução

e notas de Huberto Rohden.
















 

Postagem em destaque

                                    regresso Saem os barcos para o mar,  sabendo  que podem não voltar. Assim o tempo de Deus se põe-se de p...