a utopia das utopias
Não quero ser feliz.
Ser feliz é muito complicado.
Requer atributos que não tenho.
Subornar a consciência.
Mentir para os outros, para si mesmo.
Viver de subterfúgios e paliativos para fugir
a realidade que agride.
Ser feliz exige condições e forças anormais.
É preciso parar de se enganar, de viver de ilusões.
Abrir mão do supérfluo para se contentar
com o que importa.
É deixar de querer mudar as coisas que não pode mudar.
Entender que os conflitos podem ser benéficos, para
te desafiar e crescer.
Ser feliz é parar de levar tudo tão à sério
e aprender a rir de si mesmo.
Não ser dependente do amor e do sexo, entender que não
somos esse corpo, e sim a alma que nele habita.
Ser feliz não é para qualquer um.
Começa por parar de reclamar e saber agradecer.
Não querer controlar tudo, e deixar fluir como um rio.
É entender que a vida não dá o que você quer,
mas o que precisa para evoluir.
Ser feliz é entender que "a vida te quebra em tanta partes
quanto necessárias, para que a luz penetre em ti."
Que a vida "te humilha e te derrota de novo e de novo,
até você deixar seu ego morrer", como ensina Hellinger*.
Não preciso ser feliz.
Não essa felicidade baça e condicionada por posses
e bens materiais.
Atrelada a relações que podam suas asas e cortam
suas raízes, impedindo que o seu melhor aflore.
Não essa felicidade artificial que se vê por aí.
Não àquilo que tem preço, mas o que tem valor.
Não o amor precificado, mas o dado.
Ser feliz é a utopia das utopias.
Invenção do mundo mercantilista, em que se sonha
com bens e grandeza, ao invés de aprender
a viver e servir.
Não, não quero ser feliz.
Ser feliz é um luxo que dispenso.
Troco todos os seus apanágios por aclarar a mente,
à luz dos mistérios que os dias encandeiam.
O tempo que se esvai levanta o muro da solicitude
que me guia.
Da forma mais fácil e segura que a impostura
de ser feliz à qualquer custo.
* Bert Hellinger, escritor e psicoterapeuta alemão de 93 anos, uma das vozes mais
brilhantes do pensamento contemporâneo.
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