sexta-feira, 31 de maio de 2019









Mais uma página virada.
Mais um belo rosto arrancado 
da moldura.
O mundo não muda.
No jogo da vida
A bola sempre fura.
Tchau, querida !



quarta-feira, 29 de maio de 2019


                           
                          
                                





Não aceito mais nada pela metade.
Mais nada que não seja verdadeiro.
Nada que não venha do coração.
Chega de faz de conta. De embromação.
Não me venham mais com conversa fiada.
Histórias da carochinha, desculpas esfarrapadas.
Estou oficialmente dispensando tudo que não seja 
sincero, espontâneo. 
Estou farto de dissimulações, fingimento. 
Coisas feitas na base da obrigação.

Curiosamente, conheci alguém que diz ser 
o oposto disso.
De ser capaz de aceitar tudo, desde que nada seja omitido.
Nada seja escondido, desejos, fantasias, etc.
Em tese, uma maravilha; na prática, logo descobri, 
uma mera estratégia de quem perdeu a capacidade de amar. 
Que só vê o lado prático da coisa, ou seja, $$$$$$$...

Que pena, tanto potencial, 
desperdiçado à troco de uns trocados...
Será que a vida se resume a enganar 
e ser enganado ?
























   

terça-feira, 28 de maio de 2019





      ...o amor que ramificou-se ao infinito, 


                    invencível me tornou.





                             a musa improvável






Na noite infinita, a paz profunda e maldita.
A alma reverberando em dúbios e temerários sonhos.
A chama outra vez ardendo.

Oh, minha cara, que tão voluptuosamente chegaste,
e um bordão de esperança entoais,
pede entrada em meus depauperados umbrais.
As delícias do gozo outra vez deixando entrever.

Eis que o tempo de esquivanças e súplicas amainou.
Benvindo o novo amor que chega. 
Louco ? Insalubre ? Pois que assim seja !
Contraditório e imenso, hei de a carga suportar.
Tornei-me invencível. 
O amor que um dia tive ramificou-se ao infinito.
Uma cota de prazer é o que basta.

Benvinda, pois, musa improvável, de um tempo 
improvável e incerto.
A qual mais uma vez me entrego.
Tanto faz se a mim mesmo contradigo.
Afinal, nada pode ser perdido
se não for vivido.









segunda-feira, 27 de maio de 2019


            

       os mentirosos e os donos da verdade





Uma pesquisa recente feita no Reino Unido apurou que as pessoas mentem ou distorcem mais da metade das coisas que falam durante um único dia. Já pensou ? 
Fiquei curioso e pensei em fazer um teste comigo mesmo, retroativamente, é claro, mas desisti porque eu, sem querer sem melhor que ninguém, cheguei num estágio da vida em que praticamente não minto. 
Não só porque vivo praticamente sozinho, e com as poucas pessoas com que me relaciono as conversas são quase só sobre banalidades, mas, sobretudo, porque não preciso mais mentir. Não tenho mais razões para mentir. Afora o fato de estar mentindo agora...
O problema é que a mentira em si não é o maior problema, se me perdoam a redundância. De certa forma, em certa dose, mentiras são necessárias, não há relação que se sustente sem elas. Outro dia ainda revi um filme antigo do Jim Carrey, talvez o melhor dele, "O Mentiroso", em que seu filhinho pediu a fada madrinha, como presente de aniversário, que o pai, mentiroso e embromador de carteirinha, como todo advogado que se preze, passasse ao menos um dia sem falar mentiras. Imagine, um advogado, em pleno tribunal, ter que falar só a verdade... Hilário. Acabou sendo preso por desacato...
Mas acabou servindo de lição, e o final foi bem bacana, fodido mas reconquistando a confiança e o respeito não só do filho como da própria ex... que inveja. 
Mas voltando ao tema, mentir, sobretudo mentiras sinceras, bem intencionadas, são a chave de todos os relacionamentos bem sucedidos. Sem ironia, sem falso moralismo. No mínimo, omitir. O que não deixa de ser uma mentira.  Encrenca bem maior, quase sempre incontornável, é a distorção dos fatos, da realidade, às vezes até não por má fé, desonestidade intelectual, mas limitação mesmo. 
São os chamados donos da verdade, pessoas convictas e intransigentes em seus pontos de vista, na maneira de encarar as coisas, que simplesmente rejeitam a versão, a verdade dos outros. 
É mais ou menos como bater de frente num muro. Pode-se dialogar, argumentar, apelar para tudo, mas quando a outra parte bloqueia, se nega a dar crédito a qualquer outra coisa diferente do que pensa, a possibilidade de entendimento - e de convívio duradouro - é praticamente nula. Ainda mais àquelas que apelam para a religião e preceitos bíblicos para corroborar suas fantasiosas e monolíticas teses. 
A mesma pesquisa chegou a conclusão de que a humanidade, grosso modo, se resume a três categorias : a dos que não sabem nada e sabem disso; a dos que não sabem e pensam que sabem (a grande maioria); e a dos diferenciados que tangem a boiada. 
Ainda não sei em qual delas me enquadro melhor.   







quinta-feira, 23 de maio de 2019


                              
                      RESPEITEM O MORTO



Você, que diz que me amava
Mas que agora me odeia
Não espere eu morrer
Para me perdoar
Ou se arrepender.

Você, que diz que me ama
Mas não demonstra, se ausenta
Não espere eu morrer
Para se penitenciar
Ou lamentar.

Você, que me chama de meu irmão
Mas assiste de longe meu barco adernar
E nada faz
Não espere eu morrer
Para se arrepender de não estender a mão
Para me salvar.

Porque depois que desta para melhor
eu me for (assim espero )
Dispenso lembranças inúteis 
Homenagens, pranto.
Pois nada disso fará qualquer diferença.
Ao menos uma vez, chega de hipocrisia
Respeitem o morto.









quarta-feira, 22 de maio de 2019


        
              meu fracasso é meu sucesso





Se a métrica do sucesso na vida 
é ter a conta bancária recheada, 
danei-me.
Se é ser bem sucedido e realizado profissionalmente, 
lasquei-me.
Se é um convívio familiar numeroso e caloroso,
já foi o tempo.
Se é ter um largo círculo de amizades
e ser figurinha carimbada nas colunas sociais,
não sou nem sombra disso.
Se é se valer de estratagemas e conchavos
para obter cargos e vantagens pecuniárias
moralmente ilícitas, 
não nasci para isso.
Positivamente, não faço parte desse time.
Jogo no time dos otários.
Que vive se ferrando por acreditar na meritocracia e na sinceridade das pessoas.
Nunca tive estofo para jogar no time dos espertos.
Fracassei em quase tudo. 
Minha luta ainda é para sobreviver,
e por aqueles que ainda dependem de mim.
Continuo tendo que matar um leão por dia,
mas não me queixo.
É a vida que escolhi, tarde demais para mudar.
Meu fracasso é meu sucesso. 




 

domingo, 19 de maio de 2019







                                     (des)caminhos






Muitos caminhos levam à lugar algum.
Atalhos, bifurcações, encruzilhadas levam a todos 
os lugares, 
mas não onde queremos.

Lugares em que o fim do caminho é onde 
não deveríamos estar.
Distante do caminho do qual nos desviamos.
Privados do que tínhamos.
Tarde demais para voltar.






Dificilmente as coisas são 
como a gente pensa. 
Muito menos as pessoas. 
Quando são, nós é que não somos.






                      morto, valho mais do que vivo





Inevitável não pensar na morte depois de uma certa idade. Quando, como será. Fico pensando no que me aguarda. Ataque cardíaco, derrame, câncer, tiro ? Mentiria se dissesse que não me preocupo, que não tenho medo de morrer. A gente pode até achar que está preparado mas não está, não. 
Tive um exemplo disso ainda recentemente, numa turbulência brava na viagem de avião que fiz à Porto Alegre. Só de imaginar aquele treco se espatifando no chão, a coragem some rapidinho. Engraçado é que em meio ao apavoramento geral, com direito à gritos e gemidos, meu filho Breno, na leveza de seus 12 anos, dormia tranquilamente a meu lado. 
Mas a vida é assim, pensamentos e preocupações em relação a morte são típicos da vida adulta. Quando as doenças aparecem, e a temida velhice leva tudo de roldão, não há como não pensar no fim que nos aguarda. Como vai ser,  se sofrido, em que circunstâncias, se vamos estar amparados ou não. 
Preocupação normal, mas não há como saber. Tudo na vida é muito relativo, sujeito à mudanças repentinas, boas e ruins. Mais ruins do que boas, infelizmente.
O temor da morte está associado a velhice, a solidão. E nada pode ser mais triste e deprimente do que o desamparo e o abandono nessa fase terminal da vida.  Infelizmente, velhos largados em asilos e casas de repouso, ou mesmo vivendo isolados, abandonados pela família, é o que mais acontece hoje em dia. 
O drama costuma ser o lado financeiro. Como viver de aposentadoria é cada vez mais inviável, quem não tem renda ou trabalho corre o risco de virar indigente. As perspectivas continuam sombrias, com a bandidagem empenhada em manter o país nas trevas, de modo que nunca foi tão difícil ganhar o pão. Só quem precisa correr atrás para pagar as contas é que sabe.
São tantas obrigações e compromissos que nem ficar doente se se pode. Morto, vale-se mais do que vivo. Enquanto puder pagar o seguro de vida...  








sábado, 18 de maio de 2019


                     


            nova vida, velho enredo




O que ficou para trás já não me afeta.
É como se não tivesse existido.
Todos se foram. 
Os que ficaram, se ausentaram.
O que eu represento para eles, 
é o que representam para mim.
Pouco mais que sombras. 
Personagens de um jogo já jogado,
Que desempenham seus papéis, nada mais.

Ninguém mais precisa fingir, 
ter remorsos vãos.
Nada pode ser feito em relação
ao que passou. 
E o presente é o que sobrou.
Uma nova vida, o velho enredo. 











quarta-feira, 15 de maio de 2019





Imagine-se na pele de um desses animais inofensivos que perambulam pelas savanas africanas, tipo corça, gazela, guinu. Não faz mal a ninguém na sua vidinha pacata, comendo grama, folha, como todo vegetariano. Aí calha de torcer a pata, sofrer um ferimento qualquer, que o debilite, limite os movimentos. O que acha que vai acontecer ? As feras, os predadores, vão se condoer com  seu estado, deixá-lo em paz ?
É claro que não. Vão devorá-lo com a maior satisfação. Felizes por não precisarem fazer nenhum esforço.
Moral da história : não pense que quando você estiver fragilizado, alquebrado, por baixo, vão ter consideração por você. Estender a mão, ajudá-lo. 
Porque o ser humano é o pior dos animais. É egoísta, hipócrita, sádico. Por isso, evite expor suas fraquezas e sofrimentos na tola expectativa de que isso irá favorecê-lo, aliviar seu fardo. No fundo, ninguém liga. Solidariedade, só da boca da fora. Aprendam a se virar sozinhos, irmãos.
Onde Deus entra nessa história ? Não entra. Ele está ocupado demais em lidar com a tremenda confusão que arrumou. Com bilhões de galaxias e planetas e o tal Big Bang que não pára de se expandir. Já pensou ter que cuidar disso tudo ? Vai olhar para nós ? Ainda teve a boa vontade de mandar o filho e o que aconteceu ? Crucificaram o cara. Depois dessa, deve ter terceirizado a coisa, daí a esbórnia reinante. 
Onde isso vai dar ? Com uma estimativa de 10 bilhões de habitantes até 2050, a ignorância campeando, os recursos naturais escasseando, a natureza detonada, a beligerância aumentando até às guerras de extermínio, não é preciso ser nenhum Nostradamus para prever que o Juízo Final está próximo. E dessa vez, é duvidoso que Ele volte a intervir.  















segunda-feira, 13 de maio de 2019




                           fé, amor e caridade






O que fazer quando se perde totalmente a fé
no ser humano, 
esse "animal deveras pequenino,
repleto de letal peçonha", como bem
define mestre Ginês Gebran ?
Afastar-se ou adaptar-se ?
Resignar-se ou dar o troco na mesma moeda ?
Seguir a razão ou o coração ?

De fato, "perante tantos males, falhas, erros,
feros antagonismos,
decepções que se acumulam vida à fora.
a dúvida e a descrença nos assaltam,
lançando-nos em árido niilismo", prossegue
o admirável poeta das Nove Musas.

Que entretanto, não se faz de rogado,
ao acreditar que as Escolas e Doutrinas 
criados pelos gênios da sapiência,
possam nos guiar em  meio ao turbilhão da vida. 
Sobretudo, os ensinamentos daquele que ao mundo
veio para trazer a mais pungente  
mensagem de sabedoria que se conhece.

Ele, Jesus Cristo,  crucificado pelos homens 
para ensinar aos homens 
que só o amor e o perdão humanizam. 

Acreditando-se nele ou não,  
acima de crenças e preconceitos,
paira uma Verdade soberana :
"Na perene e árdua lida
que angustia a Humanidade,
nada de permanente se edifica
sem Fé, amor e caridade".











sábado, 11 de maio de 2019


                          
                       CRENÇAS



Perca-se tudo na vida.
Sonhos, bens, amores.
Faz parte. 
Sempre é possível recuperar, 
 Recomeçar.
Só o que é irrecuperável,
Irreparável,
É perder as crenças.
Crença na justiça.
Crença nas pessoas.
Crença em algo maior.
Que dê sentido à vida.




                   
                                  miseráveis






Olhando para a gente pobre
que por todo canto se espalha,
maltrapilhos, famintos, viciados,
a própria sorte abandonados,
ecumênicas e epidérmicas sensações
nos tomam.
Nada além disso.
Viramos o rosto e seguimos adiante.
Insensíveis à miséria alheia.
Igualmente miseráveis.







.

 



quinta-feira, 9 de maio de 2019



           

                  nem forma, nem fôrma


 


O poeta rala 
Se consome
À imaginar
Sonhar
Dar vazão 
Ao que lhe vai
No coração.

Obstinado, o poeta
Perscruta a alma
Esculpe o Verbo
Devassa os sentimentos
Com seus experimentos
No fim das contas
Meras palavras ao vento
Mesmo quando outros corações
Alcança e encanta
O seu nunca se contenta
Na angústia que o retro-alimenta.



Triste sina a do poeta
Sempre a remar
Sem sair do lugar
Tecelões do absurdo (como diria Pessoa)
Artesões da incognoscível saga humana
Sempre à perseverar
Burilando as formas
Do que não tem forma
Nem fôrma.











Tu, que com teus encantos me encanta,
a quem enganas ? a mim ? a ti ? a nós dois ?

terça-feira, 7 de maio de 2019




De certezas em certezas, vamos perdendo a leveza, a medida que julgamos e condenamos como donos da verdade que não somos.


                          insônia  







               insônia


Na antiga noite em que me afundo,
pássaros e a estrela da manhã
ainda dormem. 
Alguns mais sortudos acasalam.

Insone, não durmo, nem acasalo
Nunca mais dormi. 
Nem acasalei.
Na imensa noite
em que o amor sucumbe.

Na madrugada que se arrasta,
na vida que se engasta,
no sono que não chega,
sonhados todos os sonhos,
da minha antiga vida despertei.


domingo, 5 de maio de 2019

                               

                                         rabiscos






risco, rabisco
escrevo, reescrevo
faço, desfaço, refaço
crio, destruo, recrio
nego, renego, relevo
amo, desamo
me envolvo, me revolvo
me esgueiro, me escondo.
te quero, te rejeito
me entrego, me recolho
credo !
onde vou parar desse jeito ?
ela lá, eu aqui
o que nos separa ?
nada ? 
tudo ?
peixe abissal
no escuro deslizo
tateio
meus medos escamoteio
forte pareço
de ninguém preciso, em ninguém confio
pois se creio, quebro a cara
a cruz que carrego não é sequer uma cruz.
é o afeto sonegado
a vida que se repete
em dias iguais
de remorsos, amores passageiros
amores espedaçados
o fim e o começo entrelaçados
ora, meu amor, pensando bem,
no fundo 
não passas de um pedaço atraente de carne.
                        


     porque não fomos escolhidos






Porque não fomos escolhidos, 
vivendo entre poucas luzes.
Presos à antigos medos, limitações.
Nada podendo aspirar, 
senão aos infortúnios driblar.

Porque não fomos escolhidos,
vivemos à perguntar.
Sem obter respostas.
Nascidos sem talentos, 
em busca do que não somos.
Vendendo a alma ao Diabo.
Porque não fomos escolhidos.






                      previsão do tempo


A previsão do tempo disse que ia fazer sol,
porém o sol não apareceu.
O céu ficou cinza, e meu dia escureceu.
Pois é, ela não apareceu.
Mais uma vez me deu um chapéu,
de mim escarneceu. 
Tem prazer em me fazer sofrer.
Deu a desculpa de que lá choveu.

Por estas e outras, 
na previsão do tempo 
não confio mais...


   






                        JUÍZO FINAL


Ontem : sol, festa, alegria.
Hoje : chuva, lodo, depressão.
Ontem : fé, sonhos, esperança.
Hoje : total e irredimível descrença
no ser humano.

Mentirosos, trapaceiros, trambiqueiros,
degenerados de toda espécie,
de todos as etnias, credos, sexos.
Há que exaltá-los. 
Eu vos saúdo. 
Vocês venceram. 
Sois o substrato da humanidade.
O húmus, o sumos, a essência
de tudo que aí está. 

Sois a raça dominante. 
Nada mais importa.
Os fracos, os crentes, os honestos,
subjugados estão. 
Ludibriados, manietados, confrangidos,
humilhados, espezinhados, 
derrotados em todas as frentes.

No trabalho, na família, no amor. 
Nas relações deterioradas. 
Nos pactos rompidos.
Explorados, enganados, injustiçados,
Cordeiros de Deus que pagam pelos
pecados do mundo. 
À espera do Juízo Final que não chega.



  


  



sábado, 4 de maio de 2019


                 

                    de volta à realidade



Luminosa e límpida manhã,
convite irresistível para sair da toca,
esticar as pernas,
respirar, 
reconciliar-se com a vida,
com os prazeres simples e belos
que a Natureza proporciona.

Como essa luminosa e límpida manhã outonal
em que caminho pela inigualável orla santista,
quando ainda há pouco movimento,
mais pássaros do que gente,
bentivis, joões de barro, rolinhas,
uma infinidade de pombos voando pra lá e pra cá.
Na areia da praia alguns urubus se banqueteiam 
com o rescaldo da maré,
enquanto as máquinas não chegam 
para retirar o entulho que todo santo dia
se acumula na mesma areia 
em que nossas crianças brincam. Foda, né ?

Montanhas de lixo que o ser humano é pródigo
em produzir
e nem se dá ao trabalho de coletar.
Menos mal que a merda dos cachorros a maioria junta,
recolhendo em plásticos que depois
jogam nas lixeiras, e daí aos lixões, 
e dos lixões ao lençol freático, 
aos rios, aos mananciais de água,
melhor nem pensar mais nisso
para não estragar meu passeio, 
para não pensar em outros absurdos,
na incúria humana. 
Na mortandade dos peixes pela poluição do mar,
por exemplo. 
Esse mar que tudo de bom nos proporciona,
aos poucos envenenado, espécies ameaçadas de extinção,
sem falar na pesca predatória, abusiva, 
outro dia 
uma tartaruga rara apareceu morta aqui na praia,
com uma linha de pesca enrolada no pescoço. 
Sacanagem.
Nem os temíveis tubarões escapam da mortandade,
e com requintes de crueldade, 
capturados pela chinesada 
apenas por causa das barbatanas. 
Deviam cortar os colhões dessa gente e jogar aos porcos.
Aliás, os colhões e os próprios. 
Pronto, 
Fodeu, foi só deixar o pensamento voar
e azedou o dia.
De volta pra casa,
De volta à realidade.






   

            melhor não saber


A triste, dura realidade :
somos enganados o tempo inteiro.
O tempo inteiro.
Por todo mundo.
Nas mínimas coisas.
Exceto pelas crianças.

Passamos a vida acreditando, 
confiando, fazendo vistas grossas,
relevamos um monte de coisas.
Afinal, ninguém é perfeito.
Há enganos e enganos.
Mentiras e mentiras.
Que cada um enxerga de um jeito.
Lida de um jeito.
Levar à ferro e fogo é complicado.
Pode-se acabar sozinho.
E o que é pior : como vilão.
Porque as pessoas dificilmente assumem
seus erros.
Que erram.
Mea culpa é para os otários.
Altruísmo, só de fachada.
Num mundo de fachada.

Faz sentido : nesse pérfido contexto,
há coisas que nem é bom saber.
Muitas coisas.
Para não se machucar à toa.
Ficar ainda mais descrente de tudo e de todos.
Descobrir que foi traído.
Que mentiram pra você.
Que omitiram, esconderam coisas por anos.
Enxovalhando toda uma história.

Não, melhor não saber.
Dói menos. 
Só não seja ingênuo
ou idiota de ainda por cima
assumir culpas indevidas.
De chorar por quem não merece.
De passar por tudo de novo.





quinta-feira, 2 de maio de 2019


               


o mundo não tem segredo 
para os ignorantes 



                



Onde se tornam erráticos os símbolos
que afetam tempo e espaço,
nascem os mitos.
Personagens migram para outros contextos,
outras paisagens.
Rompem o sistema,
as expectativas normais.
Um significado único para o que tem 
vários significados, eis a sabedoria. 
No emaranhado de símbolos em que vivemos, 
novas figuras de retórica
articulam semioses naturais.
Capazes de "ver" o mal chegar.
O flagelo, por sinédoque. Por metonímia. 
Delírios da razão. 

Assim agem os personagens que conhecemos.
O paralinguístico, o supra-segmentar, o tonêmico, 
Inflexões que nos distraem e mentem.
Na publicidade que ludibria. 
No uso e abuso de artifícios, 
Representações pictóricas, encenações.
Do qual não escapam nem as Sagradas Escrituras,
Irremediavelmente mutiladas após tantas
Transcrições e traduções,
Como aponta Santo Agostinho, 
Em sua Doctrina Christiana.

Não obstante, o grande mundo pequeno se tornou.
Mais rico, mais desigual, com as mesmas dúvidas.
Nunca tão pobre em personagens, referências. 
As mentes privilegiadas preocupadas apenas em enriquecer.
Montanhas de dinheiro que jamais serão
capazes de gastar,
enquanto milhões passam fome, perdem tudo,
na Síria, no Sudão, na Venezuela. 
Sob o jugo de cruéis ditadores.
Nas periferias dos grandes centros urbanos, 
o horror da violência em suas várias facetas.
Arremessam uma pedra em alguém suspeito
e a multidão investe, bestificada.
Rompe-se o frágil sistema de expectativas normais
e ninguém vê mais nada. 
Foi assim com o Nazismo, 
com o chavismo, o lulo-petismo.
E assim sempre será.
O mundo não tem segredos para os ignorantes. 










Na dúvida, pergunte.
Para ter certeza, questione. Duvide.






Hoje sei que eu era feliz e não sabia.
O problema é que ela não era.

quarta-feira, 1 de maio de 2019


                                               

                                     versões





"Naquela época", proseava o senhorzinho de ar
compungido,
curvado no balcão tradicionalmente ocupado
pelos pinguços da padaria,
"eu tinha pouco menos de 30 anos
e passava meu tempo mais trabalhando do que em casa.
Animava-me o afeto de minha mulher e de meus filhos.
Quando à noite, voltava cansado, fumava
um cachimbo de terracota,
que tratava de esconder para que os meninos não o pegassem.
Certa noite, 
procuro pelo cachimbo no lugar de sempre
e não acho.
Chamo meu filho mais velho e pergunto : foi você 
que pegou meu cachimbo ?"
"Não, pai, foi Ludovico que o pegou
E o escondeu debaixo da cama."
"Ludovico era o mais novo de meus filhos. Procuro
debaixo da cama e não encontro nada.
Volto a meu filho mais velho e vejo que remexe no bolso,
onde encontro o cachimbo em cacos.
Dei-lhe uns tabefes, e desde então
ele abandonou nossa casa,
e nunca mais voltou.
Nunca mais soube dele.
Nunca me conformei, nem pude entender
porque abandonou nossa casa por tão pouco.
Daria tudo para revê-lo antes de morrer."
O velho termina o relato com a voz embargada,
e enquanto sorve mais um gole,
um senhor louro oxigenado lhe dirige a palavra :
"Desculpe-me perguntar, não pude deixar
de ouvir sua história.
Seu filho por acaso era um rapazola maciço, 
robusto, de tez morena ?"
'Nada disso. Era magro, esguio, quase pálido."
"Perdoe minha insistência, depois o senhor
há de compreender.
Tinha, quem sabe, cabelos negros, crespos,
puxados para trás ?"
"Não, tinha os cabelos lisos, ruivos, e os repartia no meio".
"Então, meu pai, já nem lembras direito de como eu era ?
Sou o teu filho, não me reconheces?", exclamou o louro de cabelos tingidos, 
em meio a comoção geral no recinto.
"Meu filho ? 
"Sim, seu filho. 
Porém - acrescentou, se recompondo, 
"não é totalmente exata a história que acabas de contar.
Em primeiro lugar, o que contaste 
não aconteceu comigo
e sim com o mais novo.
Bateste nele, por supor que havia quebrado teu cachimbo.
Depois, quando intercedi, defendendo-o,
me bateste também, ignorando que o senhor próprio 
havia quebrado o cachimbo na noite anterior,
numa de suas bebedeiras. Tinha-o no bolso
porque tentei consertá-lo, mas não consegui. 
Meu pai, a verdade é que nunca fostes um bom pai.
Trabalhavas muito, é verdade, 
mas bebia muito e batia em nós, e em nossa mãe.
Por isso fui embora, todos foram embora, 
e acabaste sozinho.
Enfim, espanta-me ouvi-lo espalhar uma versão
que em nada condiz com o que aconteceu.
Mas se isso o consola, fique em paz, meu pai." 

* Adaptado do ensaio "Entre a Mentira e a Ironia", 
de Umberto Eco.


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