domingo, 31 de outubro de 2021




                                 o homem só




 


O homem só nada teme.

Porque tudo já lhe foi tirado.

Sua sina é a da espera ansiosa pelo que não virá.

Deu os desejos todos por um modo de sarar as feridas.

Enquanto a indesejada não chega.

Com a pouca vaidade resumida à gasta dignidade.

E o pensamento dividido entre deitar para dormir ou morrer.

O reino dos céus está logo ali.

Espera ter feito por merecer.  




quarta-feira, 27 de outubro de 2021


                              no apagar das luzes





Assim como este virtual apagar das luzes,

meus versos também encontram seu termo,

como ondas que arrebentam nos molhes.

Nada mais tenho a dizer.

Nada devo a ninguém, nem me sinto credor.

Logo a vida que se esvai não será mais

que memória.

Vago canto de pássaros que não vemos.


Vejo passar meus últimos dias como quem

não tem mais nada a perder. Muito menos ganhar.

O que fiz de bom ou de ruim me segue como um

cão fiel.

Quando a hora chegar, hei de estar arrumado

como para ir a uma festa.

O melhor de viver é esperar.






segunda-feira, 18 de outubro de 2021



Às vezes tudo é uma questão de não abandonar

o barco só porque está fazendo água.

Mesmo porque todo barco faz água.



 

domingo, 17 de outubro de 2021

                                 


                                 a procura


Para Itamir Frantz




À razão da luz que vara preguiçosamente a bruma,

alguém que se desconhece

olha pela janela em busca do que ser,

antes que os vermes o devorem. Conquanto já o devorem.


Já teve tudo o que poderia pretender,

mas, no entanto, nada o satisfaz.

E ao negar o tempo, contra o mundo vasto e desfeito,

ombreia-se à Natureza,

alheia a seus recorrentes e obsidiados dilemas. 


E assim, à vista de seu próprio elemento,

mortifica o velho corpo na ânsia de refrear o tempo.

Firmemente, vive como um zangão

que abdica da colmeia.

A procura, se não de descobrir-se,

ao menos do fim da escuridão.  






quinta-feira, 14 de outubro de 2021

 




Todos tem algo a dizer.

Poucos se dispõe a ouvir.





                           culpa e castigo



 

Eu te amei e consumi nosso amor

até à exaustão.

O niilismo da culpa me sentencia

a viver para sempre como pó.

O coração dissoluto se distrai lambendo 

a memória,

em seu silêncio de seda.




 

terça-feira, 12 de outubro de 2021



Meu pai me ensinou muitas coisas

sem dizer uma palavra.

Dava o exemplo.



 





O que fazer com as gastas palavras ?

Como diz o mago Borges, engano supor 

que para cada coisa existe

uma palavra.

"A vida é fluída e cambiante; a linguagem,

rígida".

De fato, andamos às cegas, atrás de artifícios

retóricos que melhor expressem os sentimentos.

Alguns poucos conseguem.

Por acaso, poetas.


 



                     

             evoé ! sou uma lâmpada queimada

               



Inútil conjecturar,  martirizar-se à toa.

Tudo está como sempre esteve.

Os cânones existenciais são pétreos.

Os mais fortes prevalecem, canibalizam os mais fracos. 

Há que ter astúcia 

para sobreviver, mesmo os fortes sucumbem.

A normalidade doentia nos agarra pelo pescoço.

Todos tem fraquezas, neuroses, taras.

Eu, por exemplo, gosto de ouvir o coração

para não me sentir sozinho.

Consolo estúpido, porém, eu não sou Endimião.   

Descreio das inapeláveis cosmogonias. 

Em compensação, já não me defendo nem me debato, 

prestes a apagar 

como uma lâmpada que queima ao toque no interruptor. 

Pufff, já era. Acabou.

Uma lâmpada queimada é a metáfora da minha vida.  

Evoé !


Prefiro catálogos à livros. São convenientemente

práticos. 

Palavras muitas vezes repetidas caem no vazio. 

Reducionismo, superficialidade, rebaixamento cultural, 

a era digital é uma farsa.  

Mas bosta enlatada também vende, acredite.

Desconheço as leis da atração.

Eu sou a fome e o alimento do meu canto. 

De tanto ser sozinho, não preciso 

que ninguém me goste. Evoé !


O que eu quero da vida ?

Meu bote está à deriva, onde vai dar só os deuses sabem.

São seis horas da manhã e está tudo como sempre.

Ao menos aparentemente. Ao menos por enquanto.

A vida empacada nas suposições.

Mas de repente, consigo me ver como o mundo me vê. 

Mais um perdedor, é claro, mas tudo bem.

Não tenho mais veleidades. Sinto o mundo se fechando, 

mas é bom sentir essa leveza. 

Não decepciono mais ninguém e ainda quebro

o galho, como um velho candeeiro. Evoé !









 











 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021



                       ritos




 


Viver na penumbra. 

Sem rumo nem aconchego.

Relegado ao limbo, sem nada poder fazer

além de seguir os ritos.

De preferência, sem encher

o saco de ninguém.

Há infinitas maneiras de morrer.




                                quem viver, verá




 

                      



Ser ou não ser não é tão simples.

Porque há o ser e o não-ser no sentido 

do existir não existindo.

Existimos, porém, não existimos, à luz do atomismo.

O quantum da consciência-inteligência carrega 

a areia do tempo. 

O halo vital fecunda o espírito.

Átomos espirituais remontam à imortalidade da alma.

Nos fundamentos da Criação vibra o pensamento quântico

do Criador, que recém dá as caras. 

Vem chumbo grosso por aí.

A matéria, pulsação da humanidade, se esgota no esmaecer 

da força vital patafísica. 

Os espíritos estão entre nós, só não podemos vê-los.

Sem mistério : somos seres quadrimensionais, 

e o hiperespaço euclidiano é o portal

do insondável Além.

Quem viver, verá.

Quem morrer, também.


  

domingo, 10 de outubro de 2021


                                                    manhãs





Agonizam as manhãs de sóis esquartejados.

Do ventre que gesta as coisas mais belas e mais amargas, 

os liames primordiais transcendem os mitos e farsas.

Mitos e farsas que incendeiam os paradigmas.

A vida é o que é, inútil tentar modificá-la. 

Maternidades e cemitérios, igrejas e bordéis : tudo

remonta a mesmo mescla de carnes corrompidas.


Agonizam as manhãs de sóis esquartejados.

O choque do tempo contra o absurdo e o imutável

acende as luminárias das alegorias insofridas.

Monturos absconsos de ritos e vontades absorvem 

a áspera realidade.

Restos de antigas dignidades subvertidas aos cerimoniais

hereges.

O homem morre sem saber quem é.

Só se encontra na angústia dos proscritos.


Agonizam as manhãs de sóis esquartejados.

A vida autônoma assiste a barbárie eternizar-se.

Bárbaros matam a fonte em que todos bebem.

Não importa. O ritual dos sacrifícios faz parte da natureza.

Uns devem morrer pelo bem de outros.

O sangue derramado é a aliança com divindades 

de reputação duvidosa. 

Não importa. Nada importa. Nada restitui a inocência perdida.


Agonizam as manhãs de sóis esquartejados.

Manhãs de reinvenções dos elementos.

Manhãs de súplicas. 

Manhãs estéreis, perfuradas de matizes difusas, 

que por decreto divino velam a própria eternidade. 

Os poderes do mundo rejeitam a pomba branca da paz. 

Libertamos Barrabás e crucificamos Cristo.

Não espere nada menos.











 




 

sábado, 9 de outubro de 2021





Um dia ela acorda

de seu sono crepuscular,

já não tão jovem,

já nem tão bela,

e se dá conta que enquanto dormia,

a vida 

passou pela janela.




 




Posso ser vários em um só.

Ao gosto do freguês.

Minha melhor versão guardo para mim mesmo.



 






Lá vai um sujeito feliz.

Fez tudo diferente do que eu fiz.


 





Tudo tem sido tão pouco

depois de ter sido tanto

que está até sobrando

um dinheirinho. 


 


                             apartheid





O horror da guerra, quem esteve e sobreviveu, nunca mais esquece.

O horror dos lares maculados pela violência doméstica, 

traições, incestos.

O horror da fome, da miséria que recrudesce, neste Brasil

sem conserto e pelo mundo afora.

O horror do submundo do crime, do flagelo das drogas, de longe, 

a raiz unívoca da degradação humana.

O horror das favelas, palafitas, buracos insalubres 

que o ser humano divide com os bichos.

O horror da desigualdade, do grande e insolúvel apartheid

que condena a humanidade a conflagração.




 

sexta-feira, 8 de outubro de 2021



                                causa perdida






Não se amofine. Não se desespere.

Desgraça pouca é bobagem.

Um plano logo se sobrepõe a outro plano.

Funde-se o gozo e a dor em erma permanência.

O ardil do árduo labor medra na mesma pedra 

que a tudo transcende.

No existir que não existe, ser vário é imperativo.

Escroto, se for o caso.

Afinal, é o que o pântano da existência requer.

O defunto nem esfriou e já é esquecido.

Vender gato por lebre é a moeda corrente.

Mundo de Satan ou de Dieu, qu`importe ?

O desejo de amar se esgota no súcubo

das relações fluídas.

A nódoa congênita que tudo macula 

nos torna uma causa perdida.








 





O melhor de um cão

é que ele não liga

para o pedigree do dono.



           



terça-feira, 5 de outubro de 2021



   

           quase não sou mais eu




                  

Quase não sou mais eu. A medida que o tempo 

avança feroz sobre mim,

o distanciamento se expande 

como matéria de conhecimento e expiação.

A solidão enlaça-me com a ternura de uma anaconda.

Vivo como um soldado que perdeu a batalha,

preso à memória do homem que fui um dia.

O amor que persiste em mim é a grade

de meu cárcere. 

Fonte de toda angústia e melancolia

que movem os teares de minha entressonhada

mortalha.

É tempo de sacrificar o cordeiro redentor,

fazer por merecer 

o mundo lavado de todas as infâmias.

Arrasto minha cruz comprada no cartão de crédito.









 

segunda-feira, 4 de outubro de 2021



                      antiuniverso





Dias rotundos retroagem 

à carapaça iracunda que divide a terra 

entre o humano e a besta.

Densas catástrofes anunciadas 

se expandem

nas arcadas vilipendiadas, 

em que a raça espúria se esgueira, 

entre sangue e ossadas.


Promontórios devassados, pontes tombadas, 

soerguem enigmas unidos a dor e ao prazer. 

Nascidos, provisoriamente, em ventres ungidos

na beatitude de sociopatas e genocidas.


O antiuniverso em franca expansão açambarca 

a dor e o prazer.

Novos braços se abraçam. 

Ao pecador previamente perdoado, tudo é permitido.

Queira o Senhor ou não.



  

sexta-feira, 1 de outubro de 2021




               a espera do que não virá



Não virá o dia com que sonhava,

isso eu sei.

Como sei que nada mudará o fato

de que continuarei esperando

pelo dia 

que não virá. 






                           a vida real



nos guetos

nas favelas

nos asilos

é onde se vive

a vida real

sem glamour

adulterada

nauseabunda

em que morrer

é o melhor 

que pode acontecer.






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