domingo, 5 de maio de 2019



                        JUÍZO FINAL


Ontem : sol, festa, alegria.
Hoje : chuva, lodo, depressão.
Ontem : fé, sonhos, esperança.
Hoje : total e irredimível descrença
no ser humano.

Mentirosos, trapaceiros, trambiqueiros,
degenerados de toda espécie,
de todos as etnias, credos, sexos.
Há que exaltá-los. 
Eu vos saúdo. 
Vocês venceram. 
Sois o substrato da humanidade.
O húmus, o sumos, a essência
de tudo que aí está. 

Sois a raça dominante. 
Nada mais importa.
Os fracos, os crentes, os honestos,
subjugados estão. 
Ludibriados, manietados, confrangidos,
humilhados, espezinhados, 
derrotados em todas as frentes.

No trabalho, na família, no amor. 
Nas relações deterioradas. 
Nos pactos rompidos.
Explorados, enganados, injustiçados,
Cordeiros de Deus que pagam pelos
pecados do mundo. 
À espera do Juízo Final que não chega.



  


  



sábado, 4 de maio de 2019


                 

                    de volta à realidade



Luminosa e límpida manhã,
convite irresistível para sair da toca,
esticar as pernas,
respirar, 
reconciliar-se com a vida,
com os prazeres simples e belos
que a Natureza proporciona.

Como essa luminosa e límpida manhã outonal
em que caminho pela inigualável orla santista,
quando ainda há pouco movimento,
mais pássaros do que gente,
bentivis, joões de barro, rolinhas,
uma infinidade de pombos voando pra lá e pra cá.
Na areia da praia alguns urubus se banqueteiam 
com o rescaldo da maré,
enquanto as máquinas não chegam 
para retirar o entulho que todo santo dia
se acumula na mesma areia 
em que nossas crianças brincam. Foda, né ?

Montanhas de lixo que o ser humano é pródigo
em produzir
e nem se dá ao trabalho de coletar.
Menos mal que a merda dos cachorros a maioria junta,
recolhendo em plásticos que depois
jogam nas lixeiras, e daí aos lixões, 
e dos lixões ao lençol freático, 
aos rios, aos mananciais de água,
melhor nem pensar mais nisso
para não estragar meu passeio, 
para não pensar em outros absurdos,
na incúria humana. 
Na mortandade dos peixes pela poluição do mar,
por exemplo. 
Esse mar que tudo de bom nos proporciona,
aos poucos envenenado, espécies ameaçadas de extinção,
sem falar na pesca predatória, abusiva, 
outro dia 
uma tartaruga rara apareceu morta aqui na praia,
com uma linha de pesca enrolada no pescoço. 
Sacanagem.
Nem os temíveis tubarões escapam da mortandade,
e com requintes de crueldade, 
capturados pela chinesada 
apenas por causa das barbatanas. 
Deviam cortar os colhões dessa gente e jogar aos porcos.
Aliás, os colhões e os próprios. 
Pronto, 
Fodeu, foi só deixar o pensamento voar
e azedou o dia.
De volta pra casa,
De volta à realidade.






   

            melhor não saber


A triste, dura realidade :
somos enganados o tempo inteiro.
O tempo inteiro.
Por todo mundo.
Nas mínimas coisas.
Exceto pelas crianças.

Passamos a vida acreditando, 
confiando, fazendo vistas grossas,
relevamos um monte de coisas.
Afinal, ninguém é perfeito.
Há enganos e enganos.
Mentiras e mentiras.
Que cada um enxerga de um jeito.
Lida de um jeito.
Levar à ferro e fogo é complicado.
Pode-se acabar sozinho.
E o que é pior : como vilão.
Porque as pessoas dificilmente assumem
seus erros.
Que erram.
Mea culpa é para os otários.
Altruísmo, só de fachada.
Num mundo de fachada.

Faz sentido : nesse pérfido contexto,
há coisas que nem é bom saber.
Muitas coisas.
Para não se machucar à toa.
Ficar ainda mais descrente de tudo e de todos.
Descobrir que foi traído.
Que mentiram pra você.
Que omitiram, esconderam coisas por anos.
Enxovalhando toda uma história.

Não, melhor não saber.
Dói menos. 
Só não seja ingênuo
ou idiota de ainda por cima
assumir culpas indevidas.
De chorar por quem não merece.
De passar por tudo de novo.





quinta-feira, 2 de maio de 2019


               


o mundo não tem segredo 
para os ignorantes 



                



Onde se tornam erráticos os símbolos
que afetam tempo e espaço,
nascem os mitos.
Personagens migram para outros contextos,
outras paisagens.
Rompem o sistema,
as expectativas normais.
Um significado único para o que tem 
vários significados, eis a sabedoria. 
No emaranhado de símbolos em que vivemos, 
novas figuras de retórica
articulam semioses naturais.
Capazes de "ver" o mal chegar.
O flagelo, por sinédoque. Por metonímia. 
Delírios da razão. 

Assim agem os personagens que conhecemos.
O paralinguístico, o supra-segmentar, o tonêmico, 
Inflexões que nos distraem e mentem.
Na publicidade que ludibria. 
No uso e abuso de artifícios, 
Representações pictóricas, encenações.
Do qual não escapam nem as Sagradas Escrituras,
Irremediavelmente mutiladas após tantas
Transcrições e traduções,
Como aponta Santo Agostinho, 
Em sua Doctrina Christiana.

Não obstante, o grande mundo pequeno se tornou.
Mais rico, mais desigual, com as mesmas dúvidas.
Nunca tão pobre em personagens, referências. 
As mentes privilegiadas preocupadas apenas em enriquecer.
Montanhas de dinheiro que jamais serão
capazes de gastar,
enquanto milhões passam fome, perdem tudo,
na Síria, no Sudão, na Venezuela. 
Sob o jugo de cruéis ditadores.
Nas periferias dos grandes centros urbanos, 
o horror da violência em suas várias facetas.
Arremessam uma pedra em alguém suspeito
e a multidão investe, bestificada.
Rompe-se o frágil sistema de expectativas normais
e ninguém vê mais nada. 
Foi assim com o Nazismo, 
com o chavismo, o lulo-petismo.
E assim sempre será.
O mundo não tem segredos para os ignorantes. 










Na dúvida, pergunte.
Para ter certeza, questione. Duvide.






Hoje sei que eu era feliz e não sabia.
O problema é que ela não era.

quarta-feira, 1 de maio de 2019


                                               

                                     versões





"Naquela época", proseava o senhorzinho de ar
compungido,
curvado no balcão tradicionalmente ocupado
pelos pinguços da padaria,
"eu tinha pouco menos de 30 anos
e passava meu tempo mais trabalhando do que em casa.
Animava-me o afeto de minha mulher e de meus filhos.
Quando à noite, voltava cansado, fumava
um cachimbo de terracota,
que tratava de esconder para que os meninos não o pegassem.
Certa noite, 
procuro pelo cachimbo no lugar de sempre
e não acho.
Chamo meu filho mais velho e pergunto : foi você 
que pegou meu cachimbo ?"
"Não, pai, foi Ludovico que o pegou
E o escondeu debaixo da cama."
"Ludovico era o mais novo de meus filhos. Procuro
debaixo da cama e não encontro nada.
Volto a meu filho mais velho e vejo que remexe no bolso,
onde encontro o cachimbo em cacos.
Dei-lhe uns tabefes, e desde então
ele abandonou nossa casa,
e nunca mais voltou.
Nunca mais soube dele.
Nunca me conformei, nem pude entender
porque abandonou nossa casa por tão pouco.
Daria tudo para revê-lo antes de morrer."
O velho termina o relato com a voz embargada,
e enquanto sorve mais um gole,
um senhor louro oxigenado lhe dirige a palavra :
"Desculpe-me perguntar, não pude deixar
de ouvir sua história.
Seu filho por acaso era um rapazola maciço, 
robusto, de tez morena ?"
'Nada disso. Era magro, esguio, quase pálido."
"Perdoe minha insistência, depois o senhor
há de compreender.
Tinha, quem sabe, cabelos negros, crespos,
puxados para trás ?"
"Não, tinha os cabelos lisos, ruivos, e os repartia no meio".
"Então, meu pai, já nem lembras direito de como eu era ?
Sou o teu filho, não me reconheces?", exclamou o louro de cabelos tingidos, 
em meio a comoção geral no recinto.
"Meu filho ? 
"Sim, seu filho. 
Porém - acrescentou, se recompondo, 
"não é totalmente exata a história que acabas de contar.
Em primeiro lugar, o que contaste 
não aconteceu comigo
e sim com o mais novo.
Bateste nele, por supor que havia quebrado teu cachimbo.
Depois, quando intercedi, defendendo-o,
me bateste também, ignorando que o senhor próprio 
havia quebrado o cachimbo na noite anterior,
numa de suas bebedeiras. Tinha-o no bolso
porque tentei consertá-lo, mas não consegui. 
Meu pai, a verdade é que nunca fostes um bom pai.
Trabalhavas muito, é verdade, 
mas bebia muito e batia em nós, e em nossa mãe.
Por isso fui embora, todos foram embora, 
e acabaste sozinho.
Enfim, espanta-me ouvi-lo espalhar uma versão
que em nada condiz com o que aconteceu.
Mas se isso o consola, fique em paz, meu pai." 

* Adaptado do ensaio "Entre a Mentira e a Ironia", 
de Umberto Eco.


Postagem em destaque

                                       não acredite                         quando digo                        que te amo Não acredite quand...