é preciso que o encanto nunca cesse
Cada dia, ao longo do turbilhão das coisas tortas,
golpeia a vida.
Inflama as chagas de nosso inferno particular.
Inquilinos de espedaçadas esperanças,
só o que nos salva
é ter algo para edificar, pelo que lutar.
Antes que nada mais faça diferença.
Até que o irremediável aconteça.
É preciso que o encanto nunca cesse.
É preciso crescer ao contrário. Crer ao contrário,
depor as ideais pré-concebidas.
É preciso prescindir de representantes, intermediários,
mensageiros para enfim conhecer a verdade.
É preciso fugir das redes, das malhas, das armadilhas
reais e virtuais.
É preciso ver Deus onde Ele não exista, expulsando
os demônios que se passam por Ele.
É preciso suportar o mundo sem fazer concessões,
sacrificando tudo, menos a dignidade.
É preciso ser amável, prestativo, humilde, sem ser
subserviente.
É preciso ser forte, destemido, altivo sem ser arrogante.
E, sobretudo, é preciso nunca se dar por vencido,
para que a vida faça sentido.
Mesmo o amor eventualmente perdido.
No tempo ligeiro é preciso ser certeiro.
Pois tudo o que se guarda acaba perdido ou adulterado,
em ardilosos labirintos.
Altas virtudes e vícios postiços embutem cínicos delitos.
Como vinhos da mesma pipa.
Argumentos e pensamentos embebidos de insidiosas artimanhas,
engendrados em silenciosa e obstinada salmodia.
Matanças indiscriminadas, passatempos banais,
eis a terra prometida.
Eis a herança.
Saber e ignorância nivelados na dúbia face de estoicismo
e desespero.
Pois uns aos outros amamos e desprezamos com o mesmo fervor.
A remissão dos males e dos pecados
começa pela humildade.
Escuta o silêncio. Afasta os maus pensamentos.
Tire os sapatos e caminhe descalço até ferir os pés,
e na dor se humanize.
Desate os nós, e estreite os laços.
Livre-se dos jugos, lavre novos tratos.
Honre os compromissos, mas sem neuras.
É preciso deixar de se preocupar com tolices,
com coisas que não pode resolver.
É preciso apreciar o frescor dos dias inúteis,
em que nada e tudo acontece.
Valorizar os árduos e ardentes elos.
Antes que tudo se resuma a ludibriar o tempo.
Para que não chegue ao precário fim prescrito,
proscrito, sem um legado, como se não tivesse existido.
Incógnito como um rio subterrâneo,
sem nascente nem foz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário