domingo, 27 de setembro de 2020


                  

            fantasmas camaradas





Então o que você escreveu ontem, anteontem, ano passado, 

não vale mais ? Só porque a realidade hoje é outra ? 

Opa ! Claro que vale. Eu vivi, senti tudo aquilo. 

Já pensou se Shakespeare rasgasse os versos em que revela 

sua homossexualidade ? 

Se o Divino Marques queimasse a mais explícita obra 

sobre os mais baixos instintos humanos ? 

Se Joyce tivesse jogado no lixo o seu portentoso Ulisses, 

só porque é inacessível, chato, ilegível ?


Ora, tudo são momentos, ontem é ontem, hoje é hoje.

Ontem eu tinha a mulher dos meus sonhos,

hoje tenho que me contentar com migalhas.

Ontem eu corria 15 quilômetros com um pé nas costas,

hoje caminho alguns quarteirões e já fico 

caindo pelas tabelas.

Ontem eu podia tudo

hoje eu dou graças a Deus quando levanto sem dor.

Ontem eu tinha uma família que eu adorava,

hoje tenho que me resignar em conviver 

com meus fantasmas.

Que felizmente, são camaradas.





                                       INSTINTO





 

'Pai, você não vê que só se prejudica com as coisas

que escreve ?", me questiona meu filho Breno,

em alusão aos conflitos com a mãe, que perduram

mesmo após a separação.

"Eu sei, mas o que posso fazer, sou escorpião..."

"Desculpe, pai, não leva a mal, mas é burrice."

"Pode ser, mas... Conhece a fábula do sapo e do escorpião ?, 

perguntei.

"Pois vou te dar uma ideia do que é ser escorpião.

Certa vez houve uma enchente que deixou o escorpião 

ilhado e prestes a afogar-se, quando viu passar um sapo.

Sapinho, sapinho, por favor me ajuda, não sei nadar,

me leva até o outro lado."

"Eu não, pra você me picar ?"

"Nada disso, juro, o que eu ganharia com isso, 

nós dois morreríamos afogados".

"Tá bom, mas vê lá, hein..."

No meio do rio - uiii! gemeu o sapo.

"Filho da puta, você me picou. Agora vamos morrer

os dois, não vê a burrice que fez ?"

"Eu sei, sapinho, me perdoa, mas é o instinto..."




sábado, 26 de setembro de 2020



                            fim de festa





Acabou a festa, pessoal. 

Ou melhor dizendo, o circo.

O palhaço desmonta o picadeiro,

abre mão de ser a maior atração 

deste teatro mambembe, 

cansado de repetir

sempre o mesmo número,

que,

afinal,

nem graça têm. 

Também pudera, histórias de amor, 

quando não banais, 

são trágicas.


 










                                         puteiro Brasil






O que não nos falta são canastrões, charlatães, 

vestais disfarçadas de santos, 

antros investidos de catedrais, 

plenários convertidos em balcão de negócios espúrios.

A nação espoliada, permeada de iconoclastas virtuais, 

de profetas do absurdo semeando discórdia, 

governantes, políticos, magistrados comendo no mesmo prato,

sob a égide da impunidade.

Nada muda, a vida não muda, e quando 

muda é para pior, e o preço é sempre muito alto,

conquanto os otários continuam sendo otários.

O puteiro Brasil funciona 24 horas por dia.




  




Meus três filhos são pródigos.

Tão íntegros.

Tão melhores que eu. 

Graças a Deus !


 

sexta-feira, 25 de setembro de 2020



                os justos


jORGE lUIS bORGES 

(OU UM POUCO DE POESIA DE VERDADE)


Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.

O que agradece que na terra exista música. 

O que descobre com prazer uma etimologia. 

Dois empregados que em um café do Sur jogam um silencioso xadrez.

O ceramista que premedita uma cor e uma forma.

O tipógrafo que compõe  bem esta página, que talvez não lhe agrade. 

Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.

O que afaga um animal adormecido.

O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.

O que agradece que na terra tenha existido Stevenson (ou Borges,diria eu).

O que prefere que os outros estejam certos. 

Essas pessoas, que se desconhecem, 

estão salvando o mundo. 





A vida é sempre uma agonia,

como escreveu Lorca,

que pagou com a vida

a ousadia de ser ele mesmo,

quando seria tão fácil aderir ao fascismo, 

ao status quo reinante.

Sério, pense nisso sempre que

achar a vida uma merda.

O que seria a vida,

sem a grandeza de uns poucos ?




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