domingo, 2 de julho de 2023



                                           

                   fulgor e fedor





É tempo de sentar-se à mesa com os ladrões

e assassinos.

É tempo de abrir as cortinas para o dia que não veio,

de separar a luz das trevas. De decifrar as manhãs 

ardentes e defloradas.


É tempo de abraçar o desconhecido e conjurar o perigo.

É tempo de debruçar-se sobre os farrapos dos dias,

de plantar platitudes atrozes, de desmontar os ardis dos intrusos.


É tempo de maturar os sinistros diálogos. De largar 

as muletas dos pais, de aconselhar-se com as crianças.


É tempo de sonhar os sonhos factíveis, de restituir 

o que foi denegado, de pagar pelos pecados.

De cortar os pulsos.


É tempo de enfrentar os jagunços, de comungar 

do silêncio dos bichos, das beatitudes conflagradas,

dos desejos profanados.


É tempo de incendiar o logro dos altares, de unir 

o pecado e o prazer, de queimar os santos hereges. 


É tempo de impugnar a justiça marota, de vã espera 

e homicídios inocentes.


É tempo de alianças incontornáveis, de apontar

o dedo sujo para o acusado, de anular o que já foi julgado.


É tempo de redescobrir o riso, de abolir o rito,

de esquadrinhar o mito, até que fique o dito pelo não dito.


É tempo de roer a corda, soltar o verbo, soldar 

o concreto e o abstrato. 


É tempo de oxímoros, anacolutos, sinédoques,

de hipérboles aziagas e funções fora de hora.

É tempo de fulgor e fedor. De especificar-se,

de belezas banalizadas e demônios que rebolam. 


É tempo de pústulas e parasitas. De despautérios e

vilipêndios, de bacantes e bacanais virtuais. 

É tempo de arquiteturas do mal, de retóricas adulteradas,

de oráculos subsidiados.


É tempo de cegueiras lúcidas, de ignorantes letrados, 

de iconoclastas aloprados. 


É tempo de acender uma vela para Deus e outra

para o diabo.











 




sábado, 1 de julho de 2023



                         contrato de risco



Não se iluda.

O começo do fim se amotina em seu auge.

Quando tudo parece calmo, perfeito.

O começo do fim é o momento mais improvável.

O mais memorável.

Quando o amor parece mais grandioso, inabalável.


Tanta ventura não fica impune.

Afrodite é ciumenta, vingativa.

Engendra ciladas, intrigas, desditas. 

Põe o amor à prova, testando a paciência,

a resiliência, o sexo...

Até que o que era imenso, sublime, 

fenece,

desaparece.

Posto que mesmo em face do maior encanto,

nada dura, muito menos infinito.


Te amei mais do que a mim mesmo.

E jurava que a recíproca era verdadeira.

O que não impediu que tudo se perdesse.

E o que havia de melhor e mais raro,

no mais sórdido desfecho se transformasse.


Do auge ao declínio, é só uma questão de tempo.

Cumpre sopesar, entender que muito mais 

que de grandes momentos,

o amor não passa de um contrato de risco.

Sem prazo nem garantia. 











 



Madrugada.

É quando melhor me conheço.

E nada temo.

Além de meus medos.

De não saber mais quem eu sou.

De que depois da morte 

seja sempre noite.






Peixes cegos. Cobras voadoras.

Pássaros sem asas.

O Eufrates que seca.

Os sinais estão por toda parte.

Florestas em chamas.

A envenenada paisagem brilha 

como água luminosa.

Gotejando pura como nunca.

Deus está aqui.

Em todas as coisas infectadas.


 



Hoje está tudo bem.

Amanhã, já não sei.

A vida se repete

até chegar ao impasse,

ou a um ponto sem volta.

Que é quando as pedras rolam.


 





O urubu me espreita,

enquanto bica a carcaça de um peixe.

certo ele, pensei.

Um olho no gato, outro na sardinha. 




                            

                        meu melhor acalanto





Lembro do silvo agudo dos maçaricos voando 

antes das tempestades.

Os eucaliptos encharcados tremulando ao vento.

O cheiro luxuoso da chuva empapando a terra.

Os andorinhões  procurando abrigo nas árvores.

O céu inteiro prestes a desabar ao rebombar das trovoadas.

As poças se formando no quintal,

que depois ia chapinhar sob o alarido alegre

dos meus dois cães de guarda.


Sempre gostei da chuva. Lembro com carinho

das tempestades repentinas dos escaldantes verões 

da minha infância gaúcha, 

e mais tarde, da garoa gelada das manhãs curitibanas. 

Os pingos ecoando na rua, batendo na vegetação,

ainda são o meu melhor acalanto.

A chuva lava a sujeira da vida. 














  

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