SERENDIPIDADE
Para meu filho, Angelo
Acima da verdade está o desejo
O querer mais que tudo
Sem medir consequências
Ainda que seja para quebrar a cara
Mesmo porque só assim se aprende
Acima do desejo está a razão
O querer condicionado pelo comedimento
O bom senso como bússola
Garantias de uma vida certinha e insossa
Que não fede nem cheira
Acima da razão, os sentimentos
Pois ninguém é de ferro
Gostar, odiar, invejar : faz parte
Quem nunca mandou alguém à merda
Quem nunca atirou a primeira pedra ?
Acima dos sentimentos está a necessidade
Posto que ninguém vive de brisa
E saco vazio não pára em pé
Não é à toa que a rasteira
É o esporte mundial por excelência
Acima da necessidade está o dever
Feliz de quem não precisa obedecer a ordens, normas, horários
Se é que este alguém exista
Se é que isso seja possível
Acima do dever, os princípios
Algo que todo mundo diz ter
Mas que no mais das vezes
Quando colocados à prova
Ninguém sabe onde foram parar
Acima dos princípios, as leis
Ainda que em detrimento deles
Ainda que em função deles
Ainda que dura lex, sed lex
Só valha para os inimigos
Acima das leis está o direito
Direito de ir e vir, de expressão
E até de transgredir as leis
Pois direito é direito
Se não andar direito, é outro departamento
Acima do direito, a justiça
Ah, sim, a velha e boa justiça de guerra
Velha e caquética senhora que, cá pra nós
A ninguém mais engana
Ainda mais quando encarnada por aquelas
Manjadas figuras da Suprema Corte tupiniquim
Acima da justiça está a liberdade
O bem mais elementar e supremo da humanidade
Cuja privação só quem sofre
Pode avaliar e dimensionar
E acima de tudo, o discernimento
Sem o quê todo conhecimento é inútil
Toda bagagem insuficiente
Por consistir basicamente
Em separar o joio do trigo
Em mostrar quem é quem
De reconhecer que a fé
É mais forte que as adversidades
Que mais forte que a fé é a atitude
Mais forte que a atitude, a sabedoria
Mais forte que a sabedoria, a imaginação
Que mais forte que a imaginação é o livre-arbítrio
Mais forte que o livre-arbítrio, o poder
Mais forte que o poder, o amor
E mais forte que tudo, o destino
O acaso, a sorte, o karma, ou coisa que o valha
Ou pura e simplesmente
A serendipidade...
Sim, pois quantas coisas insensatas e tolas
Criamos ou imaginamos nos desvãos da mente
Oriundas do entendimento tardio
Do que foi sem nunca ter sido
Do peso de despertar para o hoje
Preso as angústias de ontem
Ao pesar de perdas e sonhos idos
Vergastado pelo descontentamento nocivo e compassivo
Do desconsolo permanente de viver
Sufocado entre os muros da inércia
De não saber agir
De não saber discernir
Valorizar o que importa
Descartar o imprestável
De modo a harmonizar a vida passada e a presente
Conciliar o que foi e o que é
Aprender a lidar com os estragos causados
Por equívocos e opções infelizes
Coisas que pareciam justas e certas
Mas que de justas e certas nada tinham
Posto que meramente circunstanciais e efêmeras
Como tudo na vida
Como tudo em nossa precária
E insignificante existência
Cuja real medida e importância
Só se tem depois de morto.
segunda-feira, 11 de setembro de 2017
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