domingo, 21 de julho de 2019


                                      simulacros 







Veja, não há engano maior do que supor que conhece as pessoas. Mesmo as íntimas, de convívio diário, não raro as mais estranhas, enigmáticas.
Pois ninguém é o que parece, o que aparenta.
No fundo, mero simulacros de si próprios.
A antiga musa, quem diria, companheira de tantos anos, era um poço de dissimulação e ressentimento. A musa que se apresenta, ora veja, não obstante linda e descolada, não passa de uma manipuladora, trapaceira na arte do amor.
E assim vamos.

O aparentemente dócil e inofensivo morador de rua que tento ajudar, mexendo os pauzinhos daqui e dali, esbarra no atestado de sanidade mental exigido pela administração pública, para 
dá-lo como apto a algum edificante emprego.
Na coleta de lixo, limpador de privadas, gari. 
São as opções disponíveis. Desde que passe pelo crivo
da matronga que o entrevista, da psicóloga, do aval do RH,
deixe seu endereço, o contato, que "quando surgir alguma vaga chamamos, ok ?"
Como é que é ? Qual seria o endereço de um morador de rua ? 
Ah, sim, pode ser algum albergue da prefeitura. Desde que haja vaga, é claro.
"Tá vendo, doutor ? Isso aqui é uma palhaçada ! Já estive aqui
antes e é sempre assim. Eles não entendem, eu quero é cuidar da natureza ! Ouviram bem ? Eu quero cuidar da natureza, das tartarugas ! Não quero ser lixeiro, catar merda de cachorro. 
Meu Deus, meu Deus, porque é tão difícil ?",
desabafa aos gritos, transtornado, pondo tudo a perder, com ambos expulsos do local pelos seguranças.

Volto para meu prédio. Cruzo no elevador com o sr. João, meu vizinho, o velhinho simpático de 86 anos que mora sozinho,
cujo coragem e disposição o tornam popular por onde passa.
"Não tenho visto o senhor na padaria", puxei assunto,  referindo-me ao local onde o conheci,  em que é habitué e uma atração à parte, com sua eloquência e cantorias de arias e boleros 
a la Andrea Bocelli.
"Não vou mais lá. Briguei com os donos. Dois portugas 
mãos de vaca !"
"Como assim, sr. João ?"
"Imagina que resolvi comprar um carro, para não depender 
mais da minha filha, mas me faltava 8 mil para completar o pagamento. 
Pedi para passarem no cartão de crédito da padaria,
que depois pagaria as parcelas, acredita que tiveram 
a coragem de recusar ? 
Na certa, acharam que vou dar calote. 
O ser humano não vale nada, meu filho!"


Quem sou eu para contraria-lo, sr. João.







  


































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