SORVETE COM GRAPETE
O cine Astral ficava em frente do apartamento dos meus avós maternos, e nas tardes de domingos, era o epicentro do encontro da juventude de Cachoeira do Sul, no coração do Rio Grande do Sul, onde nasci. Não era sempre que ia ver os filmes, pirralho entre 5 e 6 anos, ficava por ali para trocar gibis. Os preferidos eram o Superman, Batman, Tom Mix, Roy Rogers, Mandrake, o Fantasma que Anda, Tarzan, mas tinha também a turminha da Disney, e o meu favorito, Os Sobrinhos do Capitão.
Eram tardes mágicas, em que gostava de ficar no hotelzinho da madrinha Éli, quase do lado do cinema, uma segunda mãe para mim, foi o primeiro baque da minha vida ela ter morrido tão cedo, antes dos 50, num câncer fulminante. Para completar, era dia de encontrar as primas Tuti e Tania, duas bonecas lindíssimas, sempre chiques, filhas dos meus padrinhos Lucila e Ornaldo Rodhe, os endinheirados da família. Eu e meu primo Itamir rivalizava-mos no intento de impressionar as duas, sabem como é, quem não nutriu uma paixãozinha secreta por uma prima ? Três anos mais velho, o primão obviamente levava vantagem nesse metier, já mostrando os dons de oratória que sempre o distinguiram. Íamos a uma sorveteria próxima, com a priminha Mara às vezes de vela, onde nos esbaldávamos de sorvete com salada de frutas, ou misturado com Coca-cola ou Grapete, de uva, o meu preferido.
Já a minha especialidade era aprontar. De todas as maneiras imagináveis, era onde de meu primo pacatão me desforrava. Vivia metido em brigas e travessuras épicas, notadamente no portentoso engenho do vô Alvino, o Ordem e Progresso, até hoje virtualmente abandonado por conta de falcatruas que um genro de meu tio aprontou envolvendo o Incra. Triste sujar assim o legado do meu avô, mas assim é a vida.
Vêm daí minha certeza de que Deus designou um Anjo da Guarda poderoso para me proteger, porque, francamente, foi um milagre eu não ter morrido naquele engenho. Imagine um depósito gigantesco, de um quarteirão, de uns 30 metros de altura, carregado quase até o teto de pilhas de sacos de arroz, pesando por volta de 50 quilos, com estreitos corredores, onde passava boa parte do dia pulando para lá e para cá, abrindo esconderijos junto as paredes, buracos em que me escondia para os empregados do vô não me acharem. Mesmo ele dando ordens expressas para brecar nossa entrada, sempre dávamos um jeito de burlar a vigilância, e lá dentro ninguém nos achava, éramos terríveis. E meu primo quase sempre pagava o pato, como mais velho, devia dar o exemplo, e o tio Frantz era foda, arreava o cacete nele.
Eu até nisso dava sorte, meu castigo se limitava aos puxões de orelha da minha mãe, meu pai era um doce, desconfio até que ele se divertia com minhas artes. Me lembro de uma vez só em que apanhei dele de cinta, muito barato pelo que aprontei.
Mas isso porque eu era um estrategista, quando sentia que a coisa estava feia tratava de escapulir, passava o dia inteiro fora, esperava a poeira baixar e só voltava à noite, quando a braveza dos velhos já tinha se transformado em preocupação. Como num dos maiores aprontos que fizemos, quando num domingo em que o engenho não funcionava, passamos a manhã puxando baldes de brita para o telhado do prédio, uma baita trabalheira, tudo isso pelo prazer sádico de jogar o cascalho do alto nas pessoas que passavam na calçada.
Em poucos minutos formou-se um aglomerado na rua, e tratamos de dar no pé, descendo pela escadaria da enorme chaminé dos fornos de descasque de arroz. Eu consegui me safar, mas meu primo já tinha o tio Frantz à espera, e a surra, com uma mangueira de água, deixou marcas que ficaram por semanas, ele mais puto ainda por saber que eu, o arquiteto da coisa, mais uma vez havia me safado. Tinha pulado o muro para uma fundição que funcionava ao lado de casa, cheia de máquinas e caldeiras antigas, onde também ninguém me achava.
E isso não é nem dez por cento das peripécias que marcaram aquela fase entre os 5 aos 10 anos em que vivi em Cachoeira, até mudarmos para Curitiba, e começar outra etapa inesquecível da minha rica existência. Que aos poucos vou debulhando aqui.
minha amiguinha Joyce Losekann |
Familia Berger, anos 60, já em Curitiba
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