quinta-feira, 2 de maio de 2019

quarta-feira, 1 de maio de 2019


                                               

                                     versões





"Naquela época", proseava o senhorzinho de ar
compungido,
curvado no balcão tradicionalmente ocupado
pelos pinguços da padaria,
"eu tinha pouco menos de 30 anos
e passava meu tempo mais trabalhando do que em casa.
Animava-me o afeto de minha mulher e de meus filhos.
Quando à noite, voltava cansado, fumava
um cachimbo de terracota,
que tratava de esconder para que os meninos não o pegassem.
Certa noite, 
procuro pelo cachimbo no lugar de sempre
e não acho.
Chamo meu filho mais velho e pergunto : foi você 
que pegou meu cachimbo ?"
"Não, pai, foi Ludovico que o pegou
E o escondeu debaixo da cama."
"Ludovico era o mais novo de meus filhos. Procuro
debaixo da cama e não encontro nada.
Volto a meu filho mais velho e vejo que remexe no bolso,
onde encontro o cachimbo em cacos.
Dei-lhe uns tabefes, e desde então
ele abandonou nossa casa,
e nunca mais voltou.
Nunca mais soube dele.
Nunca me conformei, nem pude entender
porque abandonou nossa casa por tão pouco.
Daria tudo para revê-lo antes de morrer."
O velho termina o relato com a voz embargada,
e enquanto sorve mais um gole,
um senhor louro oxigenado lhe dirige a palavra :
"Desculpe-me perguntar, não pude deixar
de ouvir sua história.
Seu filho por acaso era um rapazola maciço, 
robusto, de tez morena ?"
'Nada disso. Era magro, esguio, quase pálido."
"Perdoe minha insistência, depois o senhor
há de compreender.
Tinha, quem sabe, cabelos negros, crespos,
puxados para trás ?"
"Não, tinha os cabelos lisos, ruivos, e os repartia no meio".
"Então, meu pai, já nem lembras direito de como eu era ?
Sou o teu filho, não me reconheces?", exclamou o louro de cabelos tingidos, 
em meio a comoção geral no recinto.
"Meu filho ? 
"Sim, seu filho. 
Porém - acrescentou, se recompondo, 
"não é totalmente exata a história que acabas de contar.
Em primeiro lugar, o que contaste 
não aconteceu comigo
e sim com o mais novo.
Bateste nele, por supor que havia quebrado teu cachimbo.
Depois, quando intercedi, defendendo-o,
me bateste também, ignorando que o senhor próprio 
havia quebrado o cachimbo na noite anterior,
numa de suas bebedeiras. Tinha-o no bolso
porque tentei consertá-lo, mas não consegui. 
Meu pai, a verdade é que nunca fostes um bom pai.
Trabalhavas muito, é verdade, 
mas bebia muito e batia em nós, e em nossa mãe.
Por isso fui embora, todos foram embora, 
e acabaste sozinho.
Enfim, espanta-me ouvi-lo espalhar uma versão
que em nada condiz com o que aconteceu.
Mas se isso o consola, fique em paz, meu pai." 

* Adaptado do ensaio "Entre a Mentira e a Ironia", 
de Umberto Eco.


terça-feira, 30 de abril de 2019




                   amor fraticida


Deixar de pensar
Deixar de sentir
Deixar de penar
Para voltar à vida

Esquecer o passado
Esquecer o logro 
Esquecer o malogro
Para voltar à vida

Ao amor renunciar
Do amor se curar
Para voltar à vida.

Amor fraticida
Que mata o amor
Para voltar à vida ?







                               o fim dos tempos





                                1.

Numa simples telinha, o real e o virtual se misturam 
em alentada algaravia. 
O mundo moderno não distingue o certo do errado. 
Sob crenças disseminadas por vis mentores, 
canalhas beatificados, cabras da peste,
bestas empanzinadas.
O juízo final a cada dia, no noticiário da noite.
O Criador à mercê da criatura.

                                 2.

O mundo imperfeito soçobra em bytes e gigas.
Os bons em minoria, passando por idiotas.
Crenças aviltadas em prazeres materiais, 
na prevaricação on line, nos tribunais populares e oficiais.
O Diabo nunca foi tão poderoso.
À tiracolo, a um deslizar dos dedos,
o inferno à la carte.

                                       3.

Gente proliferando feito baratas,
incapazes de pensar, em manadas virtuais se transformam.
A droga da vida imersa nas drogas.
Ah, sim, Deus a tudo perdoa.
Desde que não esqueçam do dízimo.
Que pode ser pago no débito ou no boleto.
A indústria da autoajuda de vento em popa.
Atacando em todas as frentes. Espertalhões engajados
na doce vida de enganar os outros. 
Trouxas é o que não faltam.
Mais fácil do que roubar doce de criança.
O ridículo, a vergonha, banidos do dicionário.

                          4. 
                 
Difícil dizer o que é normal
num mundo em que tudo é normal. 
Mundo decrépito, ancião de 4,5 bilhões de anos,
lapso de tempo na cronologia espacial,
em que ainda se questiona se Deus existe ou não.
Quero acreditar que sim, mas tudo indica que não.
Por via das dúvidas, rezo feito um condenado.
Nada tenho a perder, perdido como já estou,
em meio a esbórnia reinante.
Do tempo de cal e desprezo me despeço.
 
 
 


segunda-feira, 29 de abril de 2019

                      

                legistas


Longas, tortuosas, ininteligíveis linhas,
Vêm à guiza de dissecar o mundo,
O teor indecifrável dos sentimentos.
"Rodopiando em torno do silente Verbo".

Almas sofridas, mentes angustiadas, 
Entre sonhos e sombras passeiam 
Libações e versos de antanho. 
Das palavras perdidas, das palavras desgastadas,
Inauditas e inexpressas,
Pedaços da alma arremessados para (e contra ) o mundo.
A humanidade, o universo, amor, a vida
Como pano de fundo.

Abre-se a tenebrosa porta do imponderável.
Das trevas, dos mistérios da existência se ocupam.
Alheios à divina essência, no seio maternal do erro estiolados.
Condenados à dor de já não poder crer.
A (re)descobrir que nada vale a pena.
E ainda assim perseverar, recalcitrar, não obstante
A transcendência de tudo.
Aos falhos pensamentos e sistemas que nos guiam.

Flutuando entre o nascimento e a morte,
Entre o horror e os sonhos deambulando,
Eles,  mais do que todos,
Filósofos, poetas, pensadores, 
Legistas letrados de um mundo enfermo.



domingo, 28 de abril de 2019




Há pessoas que saem da sua vida e você nem nota. Outras saem e você dá graças a Deus. Poucas, pouquíssimas, são insubstituíveis.





sábado, 27 de abril de 2019





Dizem que o demônio gosta de disfarces, e o seu preferido é o de mulher. Também acho.



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Por maior que seja a estima e a consideração, não cometa o erro crasso de achar que as pessoas fariam por você o mesmo que você faria por el...