domingo, 18 de outubro de 2020


                o remédio


Como diz o velho Bukowski, chega um momento em que a gente fica tão sozinho que tudo começa a fazer sentido. Não no sentido de expiação, castigo, desgraça, embora às vezes assim o pareça. Mas para quem chegou a esse ponto por opção, ou mediante um providencial empurrãozinho do destino, a solidão, estar sozinho, chega a ser uma benção.

Pense nas vantagens de não se chatear à toa, nem chatear ninguém. Não precisar dar satisfações nem justificativas pelas mínimas coisas. Não precisar mentir, disfarçar, esconder, por senha no celular, não se sentir desprezado, usado, excluído, enganado, uma merda.

Pode se distrair sem culpa, fazer o que der na veneta, fazer merda, enfim, ser dono do próprio nariz.

Mas, é claro, tudo na vida é relativo. Devo reconhecer que em meio ao turbilhão em que me vi nesses últimos anos, topei com uma doida que só não me levou a passar por essa via crucis de novo porque ela não quis. Foi mais um inestimável favor que me fez. Não topar uma relação sem futuro, com alguém ainda preso ao passado, a um amor insubstituível. 

Mais um motivo para valorizar essa solidão que é mais uma libertação. Das injunções da vida a dois. O que um dia cansa, satura, bagunça o coreto. Às vezes ao ponto da ruptura. Nem por isso menos sofrida, dolorosa. Quando a chama do amor não se extinguiu, apenas amornou, arrefeceu.

Daí o drama das separações. Até a aceitação de que há males que vem para bem. Que não há uma só coisa perdida que não projete uma sombra, que não ofereça novas oportunidades.

O remédio é tornar as boas lembranças aliadas, ao invés do virtual luto que a separação, o ocaso de um grande amor ocasionam. Quando, na verdade, só o que morreu foi o tédio.


 







 






 









sexta-feira, 16 de outubro de 2020


               desculpe, 

     se não me fiz entender




Engano pensar que há uma palavra para cada coisa, pois há coisas que excedem qualquer coisa que as palavras possam expressar. Sentimentos, sensações, que nem as pessoas mais habilidosas com as palavras conseguem exprimir. O que acaba sendo possível através de imagens, em telas, nos acordes de uma música.

Mas o que poderia ser uma desvantagem da oratória e da literatura em relação a essas outras manifestações artísticas, é compensada pela poesia. Que quando em seu estado mais puro, seja clássica, romântica ou de inspiração onírica (a mais comum), dá conta da missão de restituir à palavra, ao menos de forma parcial, sua primitiva, e agora mais do que nunca, oculta virtude. Quem o diz não sou eu, mas um mago das letras, o argentino Jorge Luis Borges, que preconiza dois deveres a todo verso que se preze : comunicar precisamente um fato, e tocar-nos emocionalmente.

Quanto a estética, gosto é gosto, e como tal, não se discute.

Já disse várias vezes que não sei se o que escrevo tem valor literário, e estaria mentindo se dissesse que não me preocupo exatamente com os dois aspectos destacados por Borges : aliar factualidade e sentimento. Curiosamente, ao contrário do que pensava outro gigante das letras, Fernando Pessoa, para quem a emoção deve estar à serviço da razão. 

O que explica o seu extraordinário poder de dissecar os sentimentos, enquanto os versos de Borges se caracterizam pela reflexão e o uso até exaustivo de metáforas, em que passeia sua larga erudição em torno de espelhos, espadas, unicórnios e labirintos.

Ao percorrer os versos e resenhas intimistas que venho cometendo nos últimos anos, admito, como não poderia deixar de ser, que sentimentos negativos como mágoa, revolta, inconformismo, frequentemente se sobrepõem ao lirismo que deveria inspirar. Mas não vou me desculpar por coisas que vivi, que senti, e talvez nunca deixe de sentir. Porque como bem disse Borges, a poesia não é menos misteriosa e incidental que os outros elementos do orbe. Com a diferença de que nela, a emoção paira acima da precisão e do próprio julgamento.

Ordenar esses escritos de modo a que não soem como um amontoado de desabafos, desagravos ou abstrações inúteis, nunca chegou a ser minha preocupação. 

Porque são exatamente o que são. 



 



quinta-feira, 15 de outubro de 2020


                           as provações nunca acabam






Quando pensamos que não temos

mais nada à perder, 

que a vida já nos tomou e castigou 

o que podia,

eis que sempre algo mais se quebra, se perde.


O prazer acaba, 

a gente sobrevive à tudo,

mas o preço sempre é alto.

A competição é dura, as provações

nunca acabam.

Os mais corajosos sofrem calados.

Os mais desesperados desertam.

Ninguém pode recrimina-los.

Cada um carrega 

a dor 

que é capaz de suportar.







 





Às vezes me pergunto em que momento,

em qual alvorecer,

os lobos devoraram os meus despojos.


 



                      


                    sumiço



Fim de carreira, é o seguinte : 

você pode não atender o interfone, 

não responder no wats ap, sumir por quatro 

ou cinco dias, 

e ninguém sentirá sua falta.




                 

                                                  um amor maior que o meu

  


     



Os dias que passam sem deixar vestígios,

pairam como fugazes reflexos 

das coisas que não duraram.

A carne esquecida das venturas e prazeres, 

entretida no inútil engenho de dar sentido 

ao que o fado ou os astros concedem.

Em cada arabesco do caótico caleidoscópio da vida,

o pesar

pelas coisas

que ignoramos e nos ignoram. 

Os amigos, os amores sem rostos, 

meu antigo eu está morto, ou quase. 

Na dissolução dos antigos elos, 

posso ser qualquer coisa. 

Um pária, ou devoto

de uma santa causa.

Por isso escrevo.

Para isso rezo.

Para que o amor de Deus seja melhor 

que o meu.

Um amor que não só conforte, mas cure.



















 

segunda-feira, 12 de outubro de 2020



                           de mal a pior




É duro ver 

que as coisas 

não mudam.

Que as pessoas não mudam.

A política imunda não muda.


Tudo indo de mal a pior.

A gente não controla mais nada.

A economia na mão de quem

não tem nada a perder.

A educação dos filhos na mão

de influenciadores idiotas.

O amor precificado.


Você só vale pelo que tem,

pelo que pode proporcionar.

A juventude arruinada pelas drogas,

chafurdando em valores fúteis. 

A cultura do lixo "bombando".

Mozart hoje em dia morreria de fome.

Shakespeare teria que mudar o estilo,

escrever mais simples.

Pois quem manda no pedaço é...Paulo Coelho.

O que vende é Cinquenta Tons de Cinza, 

Harry Potter.


Certo está o velho safado do Bukowski

quando diz que 

"não há nada para discutir.

Não há nada para lembrar.

Não há nada para esquecer.

Alguns acreditam na possibilidade

de que Deus ajude. 

Outros encaram de frente.

E à saúde destes eu bebo

esta noite."

Eu idem.


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