sábado, 18 de março de 2023



               essa coisa sem nome



Essa coisa sem nome, 

sem eira nem beira,

pedra no caminho, 

último brado do guerreiro,

olhar de felino farejando o perigo,

linda como uma pedrada na cabeça,

despede-se de ensandecida sanha

para ser humana.


 



                                          o acordo




 



Você tem isso de não ter papas na língua.

Não se importa de machucar.

Dá uma de louca e depois chora.

Apronta e depois diz que pensa em se matar.

Diz viver no inferno mas não sai de lá.

Diz que me ama mas condiciona tudo ao dinheiro.

Tudo bem, esse é o acordo.

Quem mandou eu me apegar ?

Para você é tudo normal.

Diz não querer ninguém no pé.

Você tem isso de querer tudo e não dar 

nada em troca.

Nada além do que você melhor sabe fazer.

Dar.










 



                            desencontros





No rio impossível de atravessar.

No mar impróprio para navegar.

No chão desconhecido e estranho,  

O coração hesita em se aventurar.


No desencontro das possibilidades,

ambos com expectativas diferentes,

com visões opostas.

Como dar certo ?





                         a realidade recriada





Na realidade recriada, mentindo para nós mesmos,

a verdade é o que menos importa.

Tudo se resume a um jogo de aparências.

O caminho de pedras e espinhos fortalece.

As perdas e privações rompem amarras.

A tudo se incorpora a realidade recriada.

A única possível. A única suportável.

Compatível com fim dos prazos, dos laços compulsórios.

Na migração de asas desvairadas, renascem 

espaços não preenchidos, novas condições.

Diante de uma vida que já é outra vida.





 

quarta-feira, 15 de março de 2023



                                   a porta do inferno





A/D.

D/D.

As novas siglas divisoras de águas 

do mundo moderno.

Antes das drogas.

Depois das drogas.

A guerra das guerras.

Guerra sem trégua. Em que todos perdem.

Mesmo quem trafica, vendendo a alma ao diabo.

Nada pode ser pior.

Mais destrutivo.

Flagelo invencível, incontrolável.

Presente nos morros, nos guetos, nas altas rodas,

à disposição em qualquer esquina das grandes cidades.

Panaceia ignóbil de um mundo distópico e hedonista.

Paira sobre a humanidade como a porta do inferno.

 


















                                 sem palavras






No fim, só o que permanece é aquilo

que não se consegue expressar com palavras.

O sentimento absoluto e indefinido 

do que ficou perdido.

O tempo vivido reconstruído dentro de nós,

sem rancores e remorsos vãos.

Os caminhos abandonados, que já não nos pertencem.

As palavras não pronunciadas, trasvestidas de velhos

afetos.

As lembranças que aquecem o coração, na linguagem

muda de paisagens e abafados desejos.

A vida tão pequena que se agiganta,

num mundo interior que preenche todos os vazios.

Feito de cacos e remendos.







segunda-feira, 13 de março de 2023



             a voz




A voz de ninguém exala clarividência.

Ouçamos, pois, a voz de ninguém.

Que exala clarividência.

Já é sabido, palavras não ditas asfixiam.

Aquietam-se, inocentes, povoando de sombras

o insuportável novo.

O olho não deseja mais do que prosseguir

na miséria.

O silêncio goteja o cascalho que reluz 

como ouro de tolo.

Sobre a língua que empala a boca,

algo que ficou entalado

transpassa a esplêndida agonia.

A voz de ninguém fala por nós.









 

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