sábado, 6 de maio de 2023



                    o que não podemos ver



O que não conseguimos ver.

A verdade sonegada.

A farsa,

os segredos obscuros,

a vida dupla,

as mazelas,

coisas inimagináveis, insuspeitas.

Abscônditas, cuja revelação retardada

tudo consome,

tudo transfigura,

o amor irremediavelmente macula.








 

sexta-feira, 5 de maio de 2023



                   sangue fresco




Minhas lembranças são como vidas passadas.

Volto pelos caminhos a procura de mim, sem encontrar-me.

Em cada etapa da vida fui outro.

Sou o outro que sabe ter vivido de enganos.

Que traz consigo o pó das coisas findas.

O espectro das ilusões jamais confirmadas nem desfeitas,

poreja a existência sucateada.


Morri para as vidas que tive me evadindo dos afetos

mordentes,

que a tudo e a nada me levaram.

Renasço contra o mundo desfeito.

A sombra da sombra do homem que fui.

Surpreendentemente refeito das tantas vezes que me

assassinaram.


O sangue fresco de uma nova era - bendita ninfa ! -

referenda o novo sentir,

a vida reinventada sob novas condições.

Amar de novo, por que não ?

O céu das possibilidades já não é azul,

nem a alma límpida, mas a despeito de tudo, 

alguma coisa em mim me obriga a continuar acreditando.

Uma força interior me protege dos desastres

cotidianos.


As vidas que vivi morreram sem pompa nem circunstância,

posto que esvaídas até a última gota.

O defunto amor morreu por mim.

Horrível dizer, mas foi melhor assim.

O que morre se torna melhor depois que morre.











 

quarta-feira, 3 de maio de 2023




                   sonho ou pesadelo ?






Cem anos em dez anos.

Dez anos em um ano.

Um ano em um dia.

Assim caminha a humanidade.

Célere e incontrolável como um trem desgovernado.

Um novo-velho-mundo emerge das sofisticadas tecnologias

da era digital.

Rompendo as barreiras do impossível.

Computadores, máquinas, robôs, redefinindo conceitos,

estabelecendo novos padrões de trabalho, de relacionamentos,

de conduta.

A privacidade devassada. A liberdade vigiada. 

O tribunal do santo ofício redivivo nas redes sociais.

A Inteligência Artificial prometendo tornar o homem obsoleto.

Sonho ou pesadelo ?

O tempo dirá.





  

segunda-feira, 1 de maio de 2023



                                   



Dias heroicos transcorrem

tontos de lucidez.

A vida caminha sem vontade para o espaço hostil,

onde a história estrebucha

em atroz lirismo.


Prisioneiro dos dias, cada instante remonta

a podridão dos remorsos.

Os passos extraviados se opõe a nudez abandonada.

No vagaroso tempo, ausente, maduro, 

recuerdos indeléveis se elevam do luto,

para glória deste amor extinto.




 



                    sei lá



Sei lá por que te quero.

Não sei se é amor...ou vício...

Ou talvez seja esse seu repertório

de máscaras, dramas, fugas,

que me mantém preso à trama.

Em que um Eros debochado

tira meleca do nariz.






                  o corno do corno



Para você é muito cômodo.

Sai comigo durante a semana,

fica com o marido no fim de semana.

Diz que me ama

mas não larga o corno.


Até entendo o seu dilema.

Sei que muitas coisas estão em jogo.

Rupturas são sempre complicadas.

Daí ter me sujeitado até agora

a ser o corno do corno.


Mas cansei de ser tolerante.

Não me contento mais em ser 

simples amante.

Muito menos figurante.

Não consigo mais te dividir.

Chegou a hora de decidir.

É pegar ou largar.







 

domingo, 30 de abril de 2023


                                a utopia das utopias





Não quero ser feliz.

Ser feliz é muito complicado.

Requer atributos que não tenho.

Subornar a consciência.

Mentir para os outros, para si mesmo.

Viver de subterfúgios e paliativos para fugir

a realidade que agride.


Ser feliz exige condições e forças anormais.

É preciso parar de se enganar, de viver de ilusões.

Abrir mão do supérfluo para se contentar

com o que importa. 

É deixar de querer mudar as coisas que não pode mudar.

Entender que os conflitos podem ser benéficos, para

te desafiar e crescer.

Ser feliz é parar de levar tudo tão à sério 

e aprender a rir de si mesmo.

Não ser dependente do amor e do sexo, entender que não

somos esse corpo, e sim a alma que nele habita.


Ser feliz não é para qualquer um. 

Começa por parar de reclamar e saber agradecer.

Não querer controlar tudo, e deixar fluir como um rio.

É entender que a vida não dá o que você quer,

mas o que precisa para evoluir.

Ser feliz é entender que "a vida te quebra em tanta partes

quanto necessárias, para que a luz penetre em ti."

Que a vida "te humilha e te derrota de novo e de novo,

até você deixar seu ego morrer", como ensina Hellinger*.


Não preciso ser feliz.

Não essa felicidade baça e condicionada por posses 

e bens materiais.

Atrelada a relações que podam suas asas e cortam

suas raízes, impedindo que o seu melhor aflore.

Não essa felicidade artificial que se vê por aí.

Não àquilo que tem preço, mas o que tem valor.

Não o amor precificado, mas o dado.

Ser feliz é a utopia das utopias. 

Invenção do mundo mercantilista, em que se sonha

com bens e grandeza, ao invés de aprender 

a viver e servir.


Não, não quero ser feliz. 

Ser feliz é um luxo que dispenso.

Troco todos os seus apanágios por aclarar a mente

à luz dos mistérios que os dias encandeiam.

O tempo que se esvai levanta o muro da solicitude 

que me guia.

Da forma mais fácil e segura que a impostura 

de ser feliz à qualquer custo.


* Bert Hellinger, escritor e psicoterapeuta alemão de 93 anos, uma das vozes mais

brilhantes do pensamento contemporâneo. 











 
















 

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