desperdício
Toda vez que cai, levantei.
O mal me fez bem.
Precisei sofrer para ser melhor.
Atirei meu corpo ao mar
e o mar devolveu.
Desperdicei o amor de quem mais me amou
para amar alguém
que sequer merece.
a espera do que não virá
A espera do que não virá é longa.
O que fazer do tempo, ou de nós mesmos,
de todos os falhados, o evolver das coisas,
a brisa da espera afadigada de soprar - haverá algo
do rancor antigo nas aflições de hoje ?
A espera do que não virá é infinita.
No desfile dos dias, o aboio das vespertinas ausências
se sobrepõe a todos os clamores.
A solidão veludosa das ruínas em que tudo se encerra
remonta à eloquentes mutismos.
Como alguém que se despede.
Como tudo que flui e o verme corrói.
O amor em pouso doendo na alma.
A espera do que não virá.
o maior crime é viver
Poucos tem a sorte de Ulisses, cuja mulher-rainha
manteve-se fiel por longos dez anos.
Fez-se deus de músculos e garras para conjurar
a confusão voraz de ser e não ser humano.
O senso do dever não resolve o teorema do mal
que faz bem.
O maior crime é viver.
A entrega que não se entrega devora pupilas e pedras
de fugazes castelos.
Sossega, irmão, o mal compensa.
A beleza exasperada induz a tentação que levou o padre
a perdição.
Menininhas sem noção atiçam a carne, no alvoroço
dos desejos sonegados.
Narcisos descontentes amam orgulhos humilhados.
Confuso e autocomplacente, eis o meu fardo.
A parábola das façanhas arbitrárias confunde o amor,
como peixes asfixiados.
O bolor dos desenganos retorna em sebes novas.
Quem me curou das dores de amar não sabe amar.
Todo sonho que não aconteceu dura além de seu termo.
A banalidade da existência é a maior das riquezas.
Gatos e ratos são irmãos que se desconhecem.
É tempo de ignorar as ignorâncias para que possamos
tolerar os ignorantes.
Beatos regam as balsaminas do desespero. Em vão.
O prazer lavada de remorso é tão pouco venerável
quanto a velhice.
De que valem as afeições não correspondidas ?
Não há melhor companhia que um livro e um bom vinho
( no dizer de uma alma velha).
venturosa história
Tive toda sorte do mundo.
Não nasci desnaturado, aleijado.
Não me perdi em berço de ouro
nem chorei por abandono.
Tive toda sorte do mundo.
Nunca precisei mais do que tive.
Afeto, alimento, nunca me faltaram.
Meu anjo da guarda sempre esteve comigo.
Tive toda sorte do mundo.
Mesmo tudo perdendo, sempre me recuperei.
Não sou rico mas nada me falta.
Até um novo amor encontrei.
Tive toda sorte do mundo.
Com mais sorte do que juízo.
Oxalá o epílogo esteja à altura
de tão venturosa história.
o quanto sei de mim Faço do meu papel o lenho da minha cruz. Cavalgo unicórnios a passos lentos, para que o gozo...