a carne esquece
Quem trai, não trai por acaso.
Quando o amor acaba, qualquer pretexto serve.
A carne esquece das venturas e prazeres.
Quando o mudo entendimento passa da hora, o sopesar
da espera tece o momento da justificada desforra.
litania
Eu te perdoo, Senhor, por ter me criado desse jeito.
Por eu não entender a vida, não fazer nada direito.
Eu te perdoo, Senhor, por ter feito tudo tão complicado.
Por misturar o certo e o errado, o amaldiçoado e o louvado,
pelo bando de crápulas que fala em teu nome.
Eu te perdoo, Senhor, por não ter nascido melhor dotado.
Por tantas vezes ter acreditado e me ferrado.
Por não ter conseguido o que mais queria.
Eu te perdoo, Senhor, pelos sonhos desfeitos,
pelas preces não atendidas.
Pelos dias de angústia, pelas perdas e renúncias,
por tudo que a vida me levou e sonegou.
Eu te perdoo, Senhor, pela carne fraca e a pouca fé.
Pelo milagre que não veio.
Pela sorte que me faltou em momentos cruciais.
Por tudo te perdoo, Senhor.
Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo,
Amém.
o outro que não fui
Sou grato por tudo que tive e não vingou.
Sou grato por tudo que perdi, pelo que deixou de ser,
por tudo que me permitiu ser o que sou.
Chegar onde cheguei sem me desmerecer.
Sou grato pelos males que me fizeram,
pelas injustiças, provações, por tudo que fez a vida
valer a pena.
Sou grato a solidão iluminada, aos enredos que não entendi,
por aquilo que esqueci,
pelos desacordos e segredos pactos.
Pelo nada que tive e reparti.
Pelos entardeceres que não vi, aos afetos que não valeram,
as causas perdidas, por tudo sou grato.
Sou grato aos conflitos da culpa, as apreensões, incertezas.
Sou grato aos caminhos errados, ao inconformismo cruel,
ao desencanto do amor, ao fogo-fátuo da paixão.
Sou grato ao lado de mim que já morreu.
O outro que não fui.
a tarde de um homem
No começo ele sonhava com cegas e estranhamente
jubilosas venturas.
No decorrer dos anos, viu tudo esvair-se
diante de balaustradas e portas que não conseguia abrir.
Quando se deu conta, a tarde que é a tarde de um homem
se converteu em moldura.
E ao despedir-se de tudo que lhe era mais caro,
resignou-se em ser algo assim como um animal cansado
em sua toca,
que só não pode descansar.
a arte de viver
Viva tudo o que puder, enquanto puder.
Nada mais triste do que chegar a velhice
e concluir que viveu uma vida de merda.
Aproveite, explore, curta, de preferência sem perder
o bom senso. Loucuras, só ad hoc.
Estude, trabalhe, pois nada vem de mão beijada. Nada
que tenha valor.
Seja correto, baseie-se pelo certo, mas não seja refém
dos sentimentos.
Lembre-se, o caminho não é só para ser percorrido,
mas contemplado.
Cuidado com os extremos, deguste todos os sabores
mas não morra pela boca.
Celebre o prazer mas priorize a qualidade de vida.
Seja bom sem ser tolo.
Abdica de entender, em prol da arte de viver.
luz e escuridão
Um gato preto dança na chuva,
enquanto as nuvens se despedaçam.
O vento sussurra segredos
que só os loucos entendem.
O relógio derrete no pulso
em meio aos dias que se desfazem em fumaça.
O tempo passa como borboletas
quem voam para longe, sem olhar para trás.
A cidade é um labirinto sem fim
onde as ruas se transformam em espelhos
e os prédios são monstros adormecidos
que acordam no meio da noite.
O sol é uma laranja flamejante.
Que queima a pele e cega os olhos.
A lua é um farol misterioso
que ilumina a terra com sua luz prateada.
A floresta é um oceano de sombras
onde as árvores sussurram segredos antigos
e os animais são espíritos livres
que dançam ao redor da fogueira da vida.
No jardim dos sonhos perdidos,
as realidades de cada um se antagonizam,
como luz e escuridão.
refúgio de uma alma cansada
Nas asas da imaginação me lanço
Na sutileza das palavras me enlaço
Sopra o espírito com língua bendita
Os versos que meu coração dita.
Crio paisagens e emoções que se entrelaçam
Numa teia mágica que minh'alma abraça
Suscitando os ritos misericordiosos
Que atravessam noites e alvores.
São suspiros de amor e saudade
Revelados em cada estrofe humilde
Os versos fluem como um rio sem fim
Transportando-me para além de mim.
Nas entrelinhas desvendo segredos
Ecos de histórias e seus enredos
Palavras que em mim se digladiam
Como ardentes desejos que se irradiam.
A poesia é a voz da minha alma
Refúgio de uma alma cansada.
Bálsamo que acalenta o pensamento
Na dança eterna do tempo.
Em cada verso me abro
Em cada verso me entrego
Em cada verso me perco de mim
Por que Deus me fez assim ?
a noite eterna a noite eterna chega devagar a vida passa devagar até tudo passar e você de repente acordar sozin...