domingo, 18 de agosto de 2024




Ninguém me falou.

Não foi de ouvir dizer.

Não foi com um conhecido, um vizinho,

um parente distante.

Aconteceu com a pessoa que eu mais amava.

E da qual, ironicamente, acabara de me separar.

E mais ironicamente ainda, por iniciativa dela.

Por razões que não vem ao caso lembrar.

Mesmo porque por motivos não muito diferentes 

daqueles pelos quais todo mundo se separa. 

Eu a vi perdendo as forças, se desfigurando, 

ainda tão moça, acompanhei sua luta,

seu sofrimento, vi o seu apego a vida aos poucos 

transformar-se numa entrega compassiva e resignada,

estou certo de que até o último momento seguiu

acreditando no milagre da cura, assim como eu, nunca

vou esquecer de como comemoramos ao sair o resultado

da ressonância no cérebro e nada acusou, mas o câncer

já havia se espalhado, e poucos dias depois ela veio a falecer,

depois de duas semanas internada, eu ali a seu lado, quis

o destino que coubesse a mim cuida-la nas últimas

semanas de vida, os mais tristes e singelos que vivi. 

Singelos porque nunca estivemos tão próximos, nunca

a amei tanto como naqueles últimos dias de sua agonia.

Faz dois anos e meio que ela se foi, e ainda não me conformei,

sua lembrança está sempre comigo, volta e meia ainda choro 

como agora, sonho com ela, 

já não me culpo nem a ela pelo triste desfecho 

de nosso casamento, ambos 

erramos, e a vida encontrou uma maneira muito dura e cruel

de nos punir, e de nos reaproximar.

O que de certa forma ameniza o interminável 

suplício de sua perda.






 

sábado, 17 de agosto de 2024

                         


                           antigos amores




O que resta dos antigos amores ?

Lembranças singelas e ao mesmo tempo amargas.

Longos anos de dolentes alegrias, afinal consumidos

pelos costumeiros desatinos.

A arte da convivência desconhece os desejos aprisionados.

O amor é um animal que pede aconchego

enquanto arma o bote.

Nem toda sabedoria do mundo é capaz de mantê-lo

sob controle.

Oscila, feliz e atormentado.


O que resta dos antigos amores cala-se

em reverente comiseração ante 

a ilusão de ter sido tudo.

Somos vários e únicos, mas igualmente

despreparados para se doar, como o amor exige.

E nem sempre há tempo para o aprendizado.

Arrefecida a paixão de tantos ardores, há que encontrar

outras formas de compensação.

Sem o quê o amor aos poucos se esfacela.

E o que fica, às vezes, nem ao respeito se dá.






                                  movimentos




             

O primeiro movimento

transborda espólios preciosos e intransferíveis.

O intangível vai ao encontro do que se afasta, desviando

da alegria.

Façanhas com palavras gestam exegetas banais.

A ordem desregrada do progresso desanda o processo.

O gosto postiço dos dias sonha com sinecuras virtuais.


O segundo movimento

surge em meio ao invisível, encaixotando

corações que não se deixam apaixonar.

Acima e abaixo do horizonte, vigílias sentimentais

debatem-se em contínuo desalinho.

Edificantes e inconclusas.


O terceiro movimento

engole sapos e entope pias.

O pavor da vida embosca ciladas.

Sem que ninguém saiba por que, o verso-utopia 

tece loas a miséria dos cânticos.

Raiará o sol

antes que o dia morra ?


O quarto movimento 

segrega caçadas humanas e prisões altenativas.

Cogumelos de fogo ornam a dissecação do hipocampo.

Beijos de amianto conflagram a lonjura das ausências.

A história se repete contra a verve sibilina. 

O dito pelo não dito sempre prevalece.


O quinto movimento

desconhece o vômito dos oceanos.

Almas famintas encalham na areia à procura de conquistas.

A ronda noturna da polícia enquadra a ira dos postes.


O sexto movimento

abriga os desejos não recuperados, súplicas

por vontades algemadas, prazeres cínicos, amores aviltados. 

A deformidade da dor dispensa analgésico.

O sexo no cimento desfigura a paisagem.

A multidão solitária dorme sob o batuque ensurdecedor 

do silêncio.

Ninguém mais ama, apenas tolera.


O sétimo movimento

acredita na força do zero à esquerda,

na nulidade que faz a diferença

quando, de repente, 

crava um punhal no oceânico nada,

e planta ferraduras no normal.


O oitavo movimento

vem à reboque da derrocada, enganado 

pelo escuro, a barriga vazia mastigando a boca,

entre vacilações perpétuas que espantam

as cosmogonias mal-ajambradas.

Aldeia global, que solidão !

O relativismo filosófico é a pauta do dia.

Digressões a mais, conjecturas à menos.


O nono movimento

confia no mal, na cegueira da luz, no diploma

dos impostores, nos caminhos tortos,

na vileza dos astutos, 

nos que legislam em causa própria, nos que mentem

por uma boa causa, nos trambiqueiros, farsantes,

caloteiros, adúlteros, 

em você,

irmão, irmã, 

meu igual, meu antípoda,

a quem esses versos dedico.


 




                          todas as cores da paleta




quando você se permitir

voar acima dos obstáculos

deixar-se guiar pela intenção dos olhos

aceitando a proposta das lágrimas suspensas

sendo o epicentro de si mesmo

abrace a sua verdade triste

faça valer todas as cores da paleta

e veja o sonho tornar-se realidade.






                   podem me chamar de proesia



Cada coisa que transpõe o conhecimento transforma

o entendimento.

Os esgotados caminhos se renovam, quando

a compreensão encontre o seu uso.

A procura de novos amanhãs remonta às origens 

das adegas libertárias.

Contrapondo-se aos dias que se foram, a memória litiga

em causa própria.

A límpida manhã se desforra transpondo os falsos

meridianos.

O medo da claridade mantém-se acordado, ensimesmando

 o confuso aprendizado.

Velhas vontades e amizades gastas impelem as efabulações

sem valor.

O caminho do pai não é o mesmo do filho, por mais

que se diga o contrário.

Quando o dia demora e a noite não chega, não adianta

ter pressa.

O que não se cria, se copia.

Nem prosa, nem poesia : podem me chamar de proesia. 




 





quarta-feira, 14 de agosto de 2024


                               a verdade tem mil caras




De qual verdade estamos falando ?

A minha, a sua, a dos outros ? Meras palavras

permeadas de enigmas.

Verdades, nada mais enganoso.

Na boca do juiz venal.

Na liturgia obscura dos credos assassinos.

Na versão dos farsantes, vigaristas, demagogos.

A verdade de cada um se sobrepõem ao direito, a justiça,

a própria liberdade.

A verdade de mil caras.

A verdade de leis retrógradas.

A verdade de ditadores, déspotas, mentores, gurus

de araque.

A verdade da História, dos mitos, das lendas,

dos livros sagrados.

A verdade do amor.

Tudo é discutível.

Tudo muda conforme as circunstâncias.

Tudo que começa e acaba está em constante

transformação.

Eu não sou o mesmo de ontem.

O meu amor não é o mesmo de ontem.

A morte é a única verdade absoluta.

Até que se prove o contrário.




                                   a arca de Noé



Um iceberg flutua emocionado

no Mar do Norte. 

À procura, quem sabe, de um lugar que não

lhe pertença.

O enigma glacial bafeja novos ares.

Sob o brilho monstruoso das ruas londrinas,

poças d`água sonham com James Bond.

O cenário desfigura-se em rotas antigas.

A cronologia acústica remonta ao chifre dos vikings.

Meteorologistas piram, antevendo o naufrágio do Tâmisa.

Sem palavras, o monolito interrompido descreve o secreto

arco do passado.

Não quero a minha volta o que a realidade não suporta.

O entendimento não alcançado derrete a metonímia

das metáforas.

O degelo iminente requer novas arcas de Noé.

Em que os bichos querem ser humanos.





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