sábado, 24 de agosto de 2024


                     o que eu sei da vida




 


O que eu sei da vida ?

Nada sobre passar fome.

Não ter um teto.

Não ter uma família.

Estudo.


Nada sobre ser discriminado.

Perseguido.

Injustiçado.


O que eu sei da vida não me torna

melhor que ninguém.

Muito menos colocar nos ombros 

qualquer tipo de cruz.





                      anjo caído





Da vida verdadeira me distancio cada vez mais.

Tudo passou ligeiro demais.

Tempos de uma mundo mais manso vão ficando

inexoravelmente para trás.

Sinto a vida toda evadir-se,

como se nada mais valesse a pena.

O passado exilado num tempo sem dor, 

sem sabor.

Tempos em que os velhos morrem mais tarde,

e os jovens mais cedo.

A existência sucateada 

pervagando num beco sem saída.

Não sei se vivo ou vegeto.

O caos interior encontra e distribui significados

em ruínas antigas.

Fui mal-amado, traído.

Amargo minhas penas como um anjo caído. 



quarta-feira, 21 de agosto de 2024


                             o pacote




É fácil se iludir.

Estamos sempre imaginando coisas. 

Sonhando acordado.

Nada mais humano do que dar asas à imaginação.

Acreditar é preciso, para manter um mínimo de fé

na humanidade.

Decepção, frustração, desengano, são parte do pacote.

Não há quem não conheça o sentimento.

Não há quem não tenha sofrido por acreditar, por se iludir

com promessas, aparências.

Não há quem não tenha sido traído.

Menos mal se de uma forma de outra, compensou.

Porque o melhor ser humano que jamais existiu

foi traído com um beijo.


 



                 


         amor e ódio nascem do mesmo ventre



O mundo das vastas coisas percorre o ciclo

das mudanças apoiado em muletas.

Rios sem margens ignoram os conflitos.

Ventos opostos removem o pó das religiões de antanho.

Colheitas fora de época suprem a ausência do amor.

Paquidermes e roedores dormem acordados, para não serem

surpreendidos.

Sob o mesmo teto as irmandades se deterioram.

Trevas fraternas coagulam o sangue da infância.

Entre a língua ferina e a realidade, os párias se contentam

em caminhar às cegas.

A Terra Santa ignora a aflição dos apátridas,

enquanto a intolerância salmodia a redenção dos mártires. 

O bom e o justo desencaminham o certo.

Não esquecer de lembrar alimenta o afeto perdido.

Existir por existir requer dons especiais.

Aquiescências são sempre bem-vinda, desde que

com mãos atadas.

Países e povos se movem em direções opostas, sacudidos

por seus sismos.

Amor e ódio nascem do mesmo ventre.

Às vezes não saber é uma benção.







domingo, 18 de agosto de 2024


                           a melhor terapia



tela de Gunter Teubner
 


Minha felicidade vive de anacrônica sincronia.

Escrever é minha melhor terapia.

A inspiração se embriaga de vã filosofia.

Enquanto o vazio ancestral se amplia. 


A dualidade não admite reveses.

A vida passa dinamitando pontes.

Renovo as crenças reciclando o inominado.

Humilde e exaltado, por via das dúvidas

acendo uma vela a Deus e outra ao diabo.







Ninguém me falou.

Não foi de ouvir dizer.

Não foi com um conhecido, um vizinho,

um parente distante.

Aconteceu com a pessoa que eu mais amava.

E da qual, ironicamente, acabara de me separar.

E mais ironicamente ainda, por iniciativa dela.

Por razões que não vem ao caso lembrar.

Mesmo porque por motivos não muito diferentes 

daqueles pelos quais todo mundo se separa. 

Eu a vi perdendo as forças, se desfigurando, 

ainda tão moça, acompanhei sua luta,

seu sofrimento, vi o seu apego a vida aos poucos 

transformar-se numa entrega compassiva e resignada,

estou certo de que até o último momento seguiu

acreditando no milagre da cura, assim como eu, nunca

vou esquecer de como comemoramos ao sair o resultado

da ressonância no cérebro e nada acusou, mas o câncer

já havia se espalhado, e poucos dias depois ela veio a falecer,

depois de duas semanas internada, eu ali a seu lado, quis

o destino que coubesse a mim cuida-la nas últimas

semanas de vida, os mais tristes e singelos que vivi. 

Singelos porque nunca estivemos tão próximos, nunca

a amei tanto como naqueles últimos dias de sua agonia.

Faz dois anos e meio que ela se foi, e ainda não me conformei,

sua lembrança está sempre comigo, volta e meia ainda choro 

como agora, sonho com ela, 

já não me culpo nem a ela pelo triste desfecho 

de nosso casamento, ambos 

erramos, e a vida encontrou uma maneira muito dura e cruel

de nos punir, e de nos reaproximar.

O que de certa forma ameniza o interminável 

suplício de sua perda.






 

sábado, 17 de agosto de 2024

                         


                           antigos amores




O que resta dos antigos amores ?

Lembranças singelas e ao mesmo tempo amargas.

Longos anos de dolentes alegrias, afinal consumidos

pelos costumeiros desatinos.

A arte da convivência desconhece os desejos aprisionados.

O amor é um animal que pede aconchego

enquanto arma o bote.

Nem toda sabedoria do mundo é capaz de mantê-lo

sob controle.

Oscila, feliz e atormentado.


O que resta dos antigos amores cala-se

em reverente comiseração ante 

a ilusão de ter sido tudo.

Somos vários e únicos, mas igualmente

despreparados para se doar, como o amor exige.

E nem sempre há tempo para o aprendizado.

Arrefecida a paixão de tantos ardores, há que encontrar

outras formas de compensação.

Sem o quê o amor aos poucos se esfacela.

E o que fica, às vezes, nem ao respeito se dá.





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