Ano novo.
Momento de recolhimento e reflexão.
Feliz de quem sempre foi amado,
e soube amar também !
a beleza das entranhas
E assim,
extinto o encantamento,
a própria beleza torna-se inútil,
e o que se sabia precipita-se no espaço
enclausurado dentro de si.
Se não era o que foi,
talvez o amor devesse percorrer
outros caminhos.
No regaço de sua paz interior,
prosseguir e perseguir
o ser restituído e decifrado.
Mas facilmente se torna amargo
o jogo repetido da esperança.
As perdas fluem de nossas mãos
mas não voam.
Porque penaste por amor,
tens garras de veludo e o coração
ardendo de ternura.
E tendo cumprido a missão de bem amar,
mechas de choro hão de desnudar
a beleza das entranhas,
para que o perdido se desprenda de sua
dolente verdade.
moinhos de vento
Nuvens cansadas vagam pelo céu indeciso.
Chove ? Faz sol ? Pouco importa.
Redemunhos de sombras galopam com destino opostos.
Pedaços de lucidez forjam a vida itinerante.
Despojos de mim inventam o mundo
de moinhos de vento.
Envelheci arando o tempo renascido de si mesmo.
O mundo é grande mas nem tanto.
O contrário do contrário reformula os opostos.
Nunca fiz uma seresta à luz da lua, mas tenho lágrimas
de amanhecer nos olhos.
A dor antiga mitiga os lamentos miríficos.
O que sobrevive ao mundo de imundície e miséria ?
Coisas invisíveis preenchem os vazios ( e, eventualmente,
os bolsos).
Rompe-se o invólucro das façanhas retroativas para a
continuação da vida que não existe.
Por todos os cantos porejam versos mudos e parábolas
inconclusas.
O tempo porvir é o mesmo que medra gerânios de antanho
e peixes-anzol.
Gente de cascos nas costas rasteja à margem dos dias,
como se fosse a única alternativa.
À sombra do infinito, como o tanger de uma estrela.
sem endereço, nem destino
A vida se liquefaz em brevidades.
Em tudo o que o homem toca, destrói, encanta,
nada mais será como antes.
Quem ousa falar sobre as coisas sem nome, sem endereço,
nem destino ?
Afinal, não há um dia sequer sem deslumbramento e dor.
Quem ousa perscrutar a intimidade das coisas,
diante do eterno conflito entre matéria e espírito ?
Concilia-los requer a sabedoria dos vagalumes, dos monjolos,
dos caminhos "de não sei" das pequenas cidades.
Pois que assim seja a poesia.
Profunda e profusamente entrelaçada
com o reticente infinito.
Juiz das causas naturais, revirando os caminhos,
esculpindo palavras que deem sentido
a angustiante aventura de viver.
metapoema
Meu metapoema é feito de moléculas radioativas.
Sem régua, sem simetrias, dispensa rimas e idiossincrasias.
Perambula por caminhos forjados entre pocilgas
e restos de desencantamento.
Flui deixando rastros compassivos e amorosos, a moendar
gramáticas escalavradas no pilão da solidão.
Meu metapoema é engenho de uma polia só.
Madeira de bater em doido.
De lucidez condensada em canteiros de vento
e instigâncias vãs.
Faz-se entender como pequenas encostas de rochas
escarpadas.
Formulando compêndios sobre o nada.
Engalanado para um mundo de cegos.
Meu metapoema percorre as formas possíveis
à procura do fio da meada existencial.
Debatendo-se como um besouro na noite mal-iluminada.
No desinventar da beleza, buscando
deslindar o incompreensível.
Entredevorando-se no cio da rotina.
Meu metapoema assume todas as formas e nenhuma.
Serenando sonhos invencíveis.
Quebrando lacres de inocência, cingido por quimeras
esfarrapadas e males incuráveis.
Amaldiçoado por palavras que não
atingem seu fim.
nunca é tarde para amar
Nunca é tarde para amar
mesmo não valendo a pena
mesmo não dando em nada
nunca é tarde para amar.
Vindo de radiantes nãos
enxertado de frutos jocosos
recriando mentiras de mil faces
talhado à mão, podre por dentro
tateando palavras clandestinas
calcado nos lapsos da memória
perdido mesmo antes de nascer.
Não importa,
há amor para todos os gostos
mesmo não valendo a pena
mesmo quebrando a cara
mesmo não dando em nada.
Nunca é tarde para amar.
Mas não sejamos tão exigentes
Só porque às vezes nos sentimos
entediados e tristes
Por termos um temperamento difícil
Ou sermos muito inteligente...
o último suspiro
Abeirando abismos, gritos de âmbar coagulam
idiomas perdidos.
Entre o consentido e o desfeito,
os despojos empreendem
novas jornadas.
A primeira morte desencarna as crenças.
A floração dos gritos desmistifica os prantos.
Renega os ideais.
A cada renascer, a face túrgida do amor desmascara
o ímpeto suicida.
A vida subsequente se renova dentro da vida.
Fora de nós, as fronteiras do possível se abrem
saboreando seu sal de conflitos.
O sorriso alado a tudo transcende.
O filho amado, o andar descalço no barro,
os aromas esquecidos,
saudades do mundo bafejam cavalos, locomotivas.
O último suspiro de um tempo que não morre
entranha o líquen das profecias.
Para deixar belo o dia da partida.
o quanto sei de mim Faço do meu papel o lenho da minha cruz. Cavalgo unicórnios a passos lentos, para que o gozo...