Se já não confias em ninguém.
Se já não acreditas em promessas
e das expectativas se abstém.
Das crenças cegas desdenhas e até da própria
sombra duvidas.
Parabéns, até que enfim aprendeste
alguma coisa na porra da vida.
"É um endemoniado", diziam sobre aquele rapaz
que não deixava ninguém em paz.
Era, no fundo, inofensivo, incapaz de algum gesto violento,
apenas gostava de infernizar a vida de todo mundo
com brincadeiras de gosto duvidoso.
Estava sempre pregando sustos nos outros, berrava do nada,
fazia careta para as crianças e cara de bravo para os adultos,
às vezes abordava as pessoas para fazer perguntas sem nexo,
em suma, não batia bem da cabeça.Tão lelé da cuca que era
quem mais se divertia com suas diabruras, e ainda mais
da notoriedade que tal comportamento granjeava. Não sei
porque cargas d`água sempre que me via, repetia : "eu vou
te matar, Ivan Berger !".
Passados uns trinta anos, vi-o outro dia, atravessando
a rua, cabisbaixo, já meio curvado pelo peso
da idade, mas ainda assim facilmente reconhecível.
Por um instante, me veio a lembrança a correria da molecada
quando ele se aproximava, e um deles gritava :
- Corre que o Satanás tá chegando !
de fio à pavio
Às vésperas de partir, o préstito de alegorias segue
os enganos deleitáveis da infância.
Tendo o tempo todo para ser, desvenda-se a lâmina
dos dias à vista dos verdes anos.
Dir-se-ia que suspensos apenas pelo nó do apelo,
irreversando despautérios tartamudos.
Querelas e quizilas escarafuncham plantas carnívoras.
Lugar comum é onde o improvável se torna viável.
A despeito de tudo, estamos bem mas não muito.
O estado de direito inspira cuidados.
De fio à pavio, cada Cesar com seu cídio.
O verdadeiro diverge do contraditório em prol
do entendimento.
Todas as coisas finitas demoram.
Fundem-se às eurritmias terrestres em rondas aladas.
Esgotado o assunto, anomalias engendram equinócios.
Para entender a presente fábula, consulte um rábula.
Uma coisa é certa : por mixórdia brigo mais não.
a lembrança de tudo
Se fosse fácil esquecer, eu nem quereria
te conhecer.
Nada me ensinou mais na vida
do que nosso triste desenlace.
Se fosse fácil esquecer, eu nada
teria aprendido.
Meus ossos guardam experiências antigas.
Sequelas de cenários duros, muros carcomidos,
pátios lavados pela chuva.
Sou o que sou graças a lembrança de tudo.
Ser alguém que simplesmente passou,
sem deixar um legado,
pode haver maior pecado ?
de grão em grão
O novo tempo se sobrepõe ao abismo de si mesmo.
O homem transcendental consome seu próprio tumor maligno
em lascivas elocubrações.
O dolce staccato de não ver recompõe-se em escrutínios secretos.
A desordem do lugar de tudo chega aonde não há mais recomeço.
As promessas elevam-se num clamor maior que a esperança.
À reboque das imposturas, o amor cai em desuso.
A cor mortiça das prebendas pende entre a graça
e a desgraça.
Luz e treva coabitam acordos fraticidas.
O engodo é o pão nosso de cada dia.
Como se dizia antigamente, de grão em grão
a galinha enche o papo.
Os desejos se exaurem em lentas passagens.
O martírio da vida percorre o sentido das horas,
sob pálpebras de chumbo.
Sem retorno, a felicidade incria sebes novas.
A banalidade da existência deixa-se existir
à beira do colapso.
Fiel a seus próprios malfadados desígnios.
Deve-se perdoar quem nunca pediu perdão ? Deve-se desculpar quem nunca se desculpa ? Deve-se amar quem não sabe retribuir ? Deve-se ser bom ...