domingo, 23 de abril de 2017



         
UM LEGADO PARA NÃO ESQUECER
(entre um chimarrão e outro)


Meu pai, com cinco dos oito netos.


Dos tempos em que as fotos ainda eram em preto e branco. 


Ainda que a ninguém importe, além de mim, em se tratando de reminiscências de ordem pessoal, que tendem à emotividade e melancolia, é chegada a hora de honrar o pacto que firmei comigo próprio lá trás, no sentido de não deixar perecer - e dentro do possível resgatar - aquilo que sempre tive como meu bem mais precioso, meu tesouro particular : as recordações de uma vida pregressa rica e venturosa, em todos os sentidos possíveis e imagináveis. 
Reminiscências as quais nunca deixei de acalentar, mesmo distante da terra amada há tantos e tantos anos. E nem poderia ser diferente, tal a riqueza de minha agitada infância em recônditos lugarejos gaúchos, de nomes pitorescos como Pertil, Rincão da Porta, Paraíso do Sul, Faxinal do Soturno, Restinga Seca, Agudo, à época quase todas partes do município de minha cidade natal, Cachoeira do Sul, a capital brasileira do arroz. Lembranças que me enchem de nostalgia, e sobretudo, de eterna devoção aos que povoaram aqueles tempos inesquecíveis.
Meus avós, com os seis filhos, na década de 40.

Principalmente, minha avó paterna, a quem chamávamos simplesmente de Mutter - mãe no idioma alemão, predominante em nossa família no passado. E que vinha a ser exatamente isto, uma mãe para filhos, netos, enteados e agregados da numerosa família Berger. Com o falecimento prematuro de meu avô Rudolfo, vítima de um câncer no estômago aos 57 anos, coube a ela não só o papel de chefiar uma família de seis filhos adolescentes - meus tios Arnaldo, Bernardo, Orlando, e as tias Onira e Lolita, além de meu pai, Engelhart -, como garantir o sustento dessa prole que mal havia aprendido a ler e escrever. 
Mas que como todos os jovens à época, disciplinados desde cedo a arcar com suas obrigações e afazeres nos 3 ou 4 hectares da propriedade agrícola da família, deram conta do recado, e de certa forma, nunca foram tão felizes, livres da mão de ferro de meu avô. 
E assim foi até cada um achar a respectiva cara metade, o que não tardou a acontecer, numa época em que era comum casar cedo e começar a vida do zero, em sendo a atividade agrícola e o comércio insipiente o ganha-pão predominante nos idos de pós-guerra, até o incremento da economia lá pela década de 60.



  Minha amantíssima mutter.
Voltando à minha querida e inesquecível avó, nascida Irma Margaretha Laura Losekann, com quem convivi dos 3 aos 5 anos, enquanto meus pais se aventuravam no cultivo de arroz, numa ignota região conhecida como Pertil, atravessada pelo rio Jacuí, às margens do qual se estendiam os arrozais em que meu pai apostara tudo o que tinha e o que não tinha. 
E quando digo que nada tinha, refiro-me ao fato de ter entrado na empreitada praticamente com a cara e a coragem, tendo arrendado as terras, os equipamentos e dinheiro emprestado para as demais despesas, como sementes, fertilizantes, mantimentos para meses a fio de isolamento. Enfim, empenhado até os pentelhos, como enfatizou certa vez, ao relembrar ironicamente as peripécias passadas.

Pois foi nesse fim de mundo que meus pais se embrenharam, tão logo casaram, ele com 23 e minha mãe com 18 anos - já com este que vos fala à tira-colo -, cheios de disposição e esperanças, como só os jovens conseguem ser. Mas como tal, sem saber o quanto a vida pode ser implacável e cruel com nossos sonhos juvenis. Empreitada na qual, na verdade, só não morri porque Deus não quis, e que para meus pais, veio a ser a primeira grande provação - para não dizer falseta - aprontada pelo destino ao longo dos 60 anos e poucos anos em que estiveram juntos. 
Lembranças para mim vagas e difusas, como disse, mas pungentes, marcantes e de modo algum amargas, tristes ou deprimentes, como poderia transparecer das condições precárias em que vivíamos. Um casebre de pau a pique, numa espécie de palafita, por causa do risco de enchentes, sem eletricidade, água encanada, construído numa clareira aberta na mata, com a vizinhança mais próxima a 20 ou 30 quilômetros. E o dobro disso de Cachoeira do Sul, a cidade mais próxima, e onde nasci na madrugada do dia 25 de outubro de 1950.

                          AVENTURA ÉPICA

E para onde certo dia me dirigi, ainda mal saído dos cueiros, eu e meus dois fieis escudeiros - o buldogue Calu e o perdigueiro Respeito, verdadeiros anjos da guarda que não saiam de meu lado -, seguindo pela linha férrea que cruzava nossas terras, a qual ouvira falar, ia dar em Cachoeira, onde meu pai estava hospitalizado. 
Aventura épica, da qual mal lembro os detalhes, mas que minha mãe gostava de contar, sempre que lembrávamos desses tempos. Logo cedo, deu por minha falta mas a princípio não se preocupou, acostumada a meus sumiços e crente que eu estaria no galpão situado na parte mais alta da propriedade, onde costumava brincar e azucrinar os empregados de meu pai. 
Mas ao verificar que eu lá não estava, temeu pelo pior, que tivesse me afogado no traiçoeiro rio Jacuí, em cujas margens sempre andava. Após uma busca de horas, e já desesperada, sua única esperança residia no fato de que meus cachorros também haviam sumido, o que sugeria que eu pudesse ter me perdido no cerrado bosque que circundava a propriedade. 
Mas não foi nada disso. Que perdido, que nada. Eu estivera é muito ciente de como e onde queria chegar. Sabedor que aqueles trilhos me levariam a Cachoeira, foi naquela direção que me pus logo cedinho, acompanhado de meus cães, a fim de ver meu pai, preocupado com sua saúde.
Já caía a tarde quando o trem de sempre me trouxe de volta, flagrado, segundo o maquinista, quando já estava perto de Cachoeira. "Mas, ora, é o filho do Berger", contou à minha mãe, dando conta do sufoco que passou para me convencer a subir no trem, com meus cachorros bravos a me ladear.

Foi a primeira das muitas travessuras que marcaram minha movimentada infância, a tal ponto de me levar a dois, como direi, exílios forçados no então pacato vilarejo de Agudo. O primeiro deles, logo depois do evento acima narrado, que serviu para que meus pais se dessem conta dos riscos que eu corria, ao perambular ainda tão criança por uma região assim inóspita e perigosa. Cuja gota d`água, por assim dizer, foi outro susto danado - um profundo corte num caco de vidro, que me perfurou uma das bochechas, quando engatinhava no porão de chão batido da casa. O susto de me ver todo cheio de sangue, estancado com borra de café e sem maiores consequências - e sem eu dar sequer um pio, segundo ela -, foi determinante para que fosse entregue aos cuidados de minha querida grossmutter. 
Avó querida com quem vivi, seguramente, os momentos mais mágicos e ternos de minha existência. Dois anos que nunca esqueci, e nos quais tive o que toda criança sonha e merece ter : amor, fantasia, ludismo, alegria.   

Não que meus pais, a qualquer tempo, tivessem me privado de carinho e atenção, longe disso. Na verdade, as circunstâncias, as privações e a dureza da vida naqueles tempos foi o que os levou a me deixar sob a guarda de minha avó por uns tempos. Assim como não os culpo por terem me despachado novamente à Agudo, entre meus 6 e 7 anos, já então para cursar o primeiro ano primário no internato e colégio Dom Pedro II. Já morando em Cachoeira do Sul, num chalé cedido pelo meu avô Alvino Fritz, depois de perderem tudo na lavoura, e com meu pai passando a maior parte do tempo viajando, como vendedor, minha mãe simplesmente não aguentou o verdadeiro capetinha que eu era. O que eu e meu primo Itamir, o Chico, aprontamos no engenho do meu avô, daria um livro !

                             TELHADO DE ZINCO

Entre minhas lembranças mais vívidas, no entanto, a mais forte é da primeira das duas enchente consecutivas do rio Jacuí, entre 1952 e 53, que invadiu nosso casebre e todo o arrozal que estava prestes a ser colhido, levando tudo de roldão. Desastre que assistimos do galpão em que ficava o maquinário, estrategicamente construído na parte mais alta das terras, e onde permanecemos ilhados por duas semanas até que a água baixasse. Ainda recordo do barulho intermitente da chuva no telhado de zinco, do piado das corujas que me tiravam o sono, mas só bem mais tarde pude avaliar a amargura e desespero que meus pais devem ter sentido por ver tudo ir literalmente por água abaixo. Sentimentos que são um triste privilégio da idade adulta.

Tanto é que em nenhum momento, que eu me lembre, sofri ou passei por qualquer trauma em consequência daqueles infortúnios, muito pelo contrário. Com meu pai trabalhando de sol à sol para recuperar o atraso, e minha mãe às voltas com mais um bebê, minha irmão Ivania, pude desfrutar de uma liberdade simplesmente impensável nos dias de hoje. Um piazito de 3 anos que perambulava o dia todo pelo matagal, pelo arrozal, nadava e pescava no traiçoeiro Jacuí que teimava em nos arruinar, e que afora o chiado mau-agourento das corujas de nosso galpão, nada temia, nada receava. A ponto de certa vez ser flagrado por minha mãe brincando com uma cobra, cuja incidência era comum num lugar infestado de jararacas, cascavéis, e da venenosíssima a urutu-cruzeiro. 
Se dessa temerária travessura não me recordo, por outro lado lembro perfeitamente de certa vez em que um operário foi picado por uma urutu-cruzeiro em meio ao arrozal, a qual meu pai, num pulo, decepou a cabeça num golpe de facão. Recordo que o corpo roliço e grosso ficou ali se contorcendo pra lá e pra cá, sem que ninguém descobrisse onde a cabeça dela fora parar - só mais tarde um outro empregado achou-a no topo do próprio chapéu, imagine o susto. 
Mas o que mais me impressionou : há quilômetros de médico, farmácia ou pronto-socorro qualquer, o sujeito não pensou duas vezes, num golpe certeiro cortou o próprio dedão com o afiadíssimo facão. Urrando de dor, foi levado a nossa casa, onde enrolaram seu pé num pano embebido de óleo diesel de um dos tratores, e dias depois o negro boa praça Batista, homem de confiança de meu pai, lembro bem, já estava na ativa outra vez.

Virando esse capítulo inicial de minha vida, me sinto impelido a pular logo para o epílogo desse breve relato auto-biográfico, no fundo um pretexto para honrar à memória de meus pais. Para que todos que tiveram a paciência de me acompanhar até aqui, saibam o quanto eles amaram e foram amados, e tomem ciência de uma ínfima parte do que fizeram e representaram para nós, filhos e netos. Seja enquanto provedores, como quando já doentes e decrépitos, quando coube a nós, ainda que em meio aos maiores sacrifícios, mormente por parte de minhas irmãs, que os acolheram e cuidaram até o fim, retribuir o muito que nos deram. 

Já velhinho, com minha irmã Ingrid
Ele, meu amado e respeitado pai, que todos chamavam simplesmente de Berger, falecido há oito anos. Ela, dona Dalila, ou Lila para os íntimos, minha enérgica e geniosa mãe, falecida no último dia 08/02/2017. Um casal oriundo das numerosas famílias Berger e Fritz, espalhadas pelo interior do Rio Grande do Sul, que ficou junto 65 anos, teve três filhos, oito netos, e uma história de vida digna e honrada que, resumida e modestamente, tento aqui resgatar. E que, mais do que uma simples homenagem póstuma, tem a pretensão de manter vivo o legado que deixaram. 

                           SONHOS DE VERÃO

Um legado de amor, dedicação e superação, que mesmo em meio a dificuldades e sofrimento, tem aqui meu testemunho de que não foi em vão. De que não cairá no esquecimento. Da mesma forma que jamais esqueci dos encontros fraternais das férias de fim de ano, quando já morávamos em Curitiba, durante quase toda a década de 60, em Agudo. À época, pouco mais que um simples povoado, cercado de morros ( o maior deles, que deu nome a simpática cidade em que se transformou ) em que a família toda se reunia para um mês inteiro de confraternização e divertimento, entremeado de histórias e causos contadas em meio a comida farta e gargalhadas, com direito a piadas contadas em alemão e concurso de peidos - ganhava o mais estrondoso e o mais fedido. 

Tudo na maior harmonia e camaradagem, entre um chimarrão e outro, que aprendi a curtir desde cedo, e a cervejinha gelada que também passei a apreciar, só que mais tarde. 
Em suma, verdadeiros sonhos de verão que eu, em meu íntimo, já pressentia serem únicos  e especiais, daí o choro convulsivo que me acometia, e que a todos contagiava, a cada despedida. Momentos maravilhosos que valeram por uma vida, e cujas lembranças nem o tempo implacável pode apagar.


                                     MEMORIAL

A TODOS QUE DE UMA FORMA OU DE OUTRA, FIZERAM PARTE DESSA HISTÓRIA,
MINHA ETERNA GRATIDÃO.
AS FILHAS E MANAS QUE TANTO SE DOARAM
Primo  Itamir, um verdadeiro filho e irmão.
IVANIA, IRMÃ E FILHA MARAVILHOSA
DANIELI,  NETA CRIADA COMO FILHA

TIA NELDA, IRMÃ SEMPRE PRESENTE
Turma de alunos e internos do Colégio Dom Pedro II de 1957, com o professor Willy Roos e esposa ao alto.  Sou um desses alemãzinhos, nessa incrível foto  publicado pelo  historiador William Werlang, em seu blog. 
Chimarrão amigo, evocando lembranças












  
                    






    










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