sexta-feira, 24 de março de 2023



                   a vida é estranha





Eu bebo todo o dia.

Bebo e fumo pra cacete.

Sobrevivo com as coisas que me dão, que acho na rua.

O cardápio da lata de lixo é bem variado.

Tem até recheio com barata e formiga kkkk.

Mas não tenho nojinho não. Quem vive nas ruas não pode

se dar ao luxo dessas frescuras.

Qualquer coisa que sirva para forrar o estômago é bemvida.

Comida nunca foi problema.

Duro é o de sempre, o convívio com o bicho-homem.

Volta e meia tem uns arranca-rabo.

Já levei duas facadas.

Surras, já perdi a conta.

Teve uma vez que quase morri.

Quebrei um punhado de ossos, fui parar no hospital,

na ala vip...dos indigentes kkkkk.

Mas dois dias depois me botaram na rua.

Todo enfaixado, mal podendo andar. Aí foi dureza, véio.

Ninguém liga nem tem consideração por indigente.

Quando muito, dão uns trocados para aliviar a consciência.

Um ou outro mais humano paga uma refeição, dá umas

mudas de roupa.

Mas no geral, até que não é tão ruim.

Se eu não tenho ninguém, família ? Ah, tenho sim, mas não

sei mais nada deles.

Não querem saber de mim, e nem eu deles.

Me voltaram as costas quando mais precisei.

Me crucificaram, sem atenuantes.

Tudo porque perdi tudo. Eu tinha posses, sabe ? Tinha

uma vida boa, confortável, mas confiei demais num sócio,

e acabei falido. 

Entrei em desespero, dei de beber, desanimei.

Não demorou para que minha mulher me trocasse por outro.

E sem grana, todo mundo desapareceu. Parentes, amigos...

Fui posto no olho da rua.

Meus filhos nem quiseram me ver.

Paguei os pecados, acho.

Mas hoje vejo as coisas por outro prisma.

Cheguei a conclusão de que não perdi nada.

Era tudo ilusório.

A verdade é que as coisas materiais não me faziam feliz.

E os afetos que eu tanto prezava, não eram reais.

O que eu tenho hoje vale muito mais do que eu tinha.

Durmo todo dia num lugar diferente.

Tenho esses dois cães aí que não me largam e cuidam de mim.

Não tenho mais gastrite, dor de cabeça, preocupação com contas,

em agradar os outros.

Outro dia vi minha ex-mulher passando do outro lado da calçada,

e para minha surpresa, não senti nada. Nem raiva, nem mágoa,

nada. Parecia uma estranha.

A vida é estranha.























 

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