quarta-feira, 26 de junho de 2019


                   é o amor, meu chapa





Quem mais te ama, é quem mais te odeia.
Mas ainda não sabe.
Até o dia em que a ira explode.
Mágoas e frustrações represadas vem à tona,
levando tudo de roldão.
E o que era lindo e imaculado
num Vesúvio se transforma.

Não se iluda, não se engane,
juras de amor eterno não impedem
que cedo ou tarde
tudo desande,
tudo desabe.
Que tudo se volte contra você.
Os podres, as baixarias.

É o amor, meu chapa.
Não dura para sempre.
No máximo, alguns anos.
A medida que as pessoas se conhecem,
o amor aos poucos se apequena.
Em outra coisa se transforma.
Quando muito,
companheirismo, cumplicidade.

Feliz de quem entende e impede 
que o presente o passado denege.
Que o amor ferido de morte 
mate tudo o que de bom foi vivido.
Que quem mais te amava, 
mais venha a te odiar.  







sábado, 22 de junho de 2019



                      possibilidades





Havia tudo naquela vida à ser descoberto.
À ser vivido, explorado à exaustão.
Tantas possibilidades denegadas. 

Aquilo que de ti desconhecia.
Aquilo que de mim desconhecias.
Aquilo que não tivemos oportunidade
de revelar.
Por medo, insegurança.

Coisas que poderiam nos unir
mas, ao omitidas,
acabaram por nos separar.




sexta-feira, 21 de junho de 2019



                                 O RESTO É RESTO







Há pessoas que se acham superiores porque são ricas.
Há pessoas que se acham superiores porque são cultas.
Há pessoas que se acham superiores porque se acreditam mais íntegras.
Há pessoas que se acham superiores porque são bonitas.
Há pessoas que se acham superiores porque são poderosas.
Há pessoas que se acham superiores porque se consideram mais espertas.
Ledo engano.
Nada disso efetivamente conta quando 
a sorte muda. 
Quando algum deus sacana estala os dedos e a vida
vira do avesso. 
E a pessoa se vê impotente, doente, perde entes queridos, 
faz besteira, ou simplesmente 
chega ao fim da jornada. 
Toda soberba e arrogância reduzida a pó.
É quando se percebe que só o que nos faz superiores, 
quase divinos, capazes de tudo enfrentar, é o amor.
A capacidade de amar. De perdoar. 
O resto é resto. 





quinta-feira, 20 de junho de 2019




               O OLHAR DO POETA


"É um mundo vertical : uma nação de pássaros, uma multidão de árvores... Tropeço em uma pedra, escarvo a cavidade descoberta e uma aranha imensa de pelo vermelho me olha fixamente, imóvel, como um grande caranguejo... Um besouro dourado me lança sua emanação metífica enquanto desaparece como um relâmpago seu radiante arco-íris... Ao passar, atravesso um bosque de abetos muito mais altos do que eu; caem no meu rosto sessenta lágrimas de seus verdes olhos frios e atrás de mim ficam por muito tempo agitando seus leques...Um tronco podre, que tesouro ! ... fungos negros e azuis deram-lhe orelhas, plantas parasitas vermelhas cobriram-no de rubis, outras plantas preguiçosas emprestaram-lhe seus filamentos e brota, veloz, uma cobra de suas entranhas podres como uma emanação, como se do tronco morto lhe escapasse a alma... Mais adiante cada árvore se separou de suas semelhantes...Erguem-se sobre a alfombra da selva secreta, e cada uma de suas folhas, linear, encrespada, ramosa, lanceolada, tem um estilo diferente, como cortada por uma tesoura de movimentos infinitos...Um barranco; a água transparente desliza sobre o granito e o jaspe...Voa uma mariposa pura como um limão, dançando entre a água e a luz...A meu lado as carceolárias infinitas me saúdam com suas cabecinhas amarelas...Lá no alto, como gotas arteriais da selva mágica, vergam-se as liliáceas vermelhas...Num tremor de folhas, a velocidade de uma raposa atravessa o silêncio, mas o silêncio é a lei destas folhagens...Ao longe, o grito distante de um animal confuso...A intersecção penetrante de um pássaro escondido... O universo vegetal apenas sussurra até que uma tempestade ponha em ação toda a música terrestre."


Aos olhos de uma pessoa comum, um simples, tedioso e até assustador bosque. 
Aos olhos do poeta, um mundo cheio de belezas, surpresas e encantamento.

(Descrição de Pablo Neruda de um bosque chileno de sua infância - "daquelas terras, daquele barro, daquele silêncio, eu saí a andar, a cantar pelo mundo"). Prefácio do livro autobiográfico, Confesso que Vivi.




                            pode crer





O inimigo está por toda parte.
Assassinos, ladrões, cobras traiçoeiras,
cães raivosos
caminham lado a lado, ao nosso lado.
À nossa espreita. Prontos para dar o bote.
Convenientemente disfarçados.
Lobos em pele de cordeiro.
Com uma mão estendida,
a outra de punho cerrado.
Numa mão,uma flor. 
Na outra, uma pedra.

Não fazem nada sem segundas intenções.
Pessoas comuns, aparentemente respeitáveis,
de terno, batina, jaleco, farda, toga,
disfarces perfeitos.
Afáveis, cordiais, amorosos, confiáveis,
até se revelarem. 
Ai de quem seus segredos a eles confiarem.
Que lhes permita de seus sentimentos e fraquezas se adonarem.
Pois advirá o dia em que tudo virá à tona.
Da pior forma possível.
Dirão, a teu respeito : olhem, nunca prestou.
Não passa de um farsante, filho da puta.

Tua casa frequentaram.
Em tua mesa comeram.
De ti, do teu trabalho, dependeram. 
E no entanto, te apunhalam.
Te enganam.
Te roubam.
Te humilham.
Te esmagam como uma mosca, se puderem.
Pois assim é o ser humano.
Ingrato, perverso, falso.

Não se iluda.
Nunca lhes dê as costas.
E sobretudo, não lamente de eventualmente
ficar sozinho.
Deus designou um anjo da guarda 
para estar sempre contigo.
Para o que der e vier.
É o que basta.
Pode crer.



















quarta-feira, 19 de junho de 2019







                    cadáveres insepultos






Estou cansado de desenterrar cadáveres.
Exumar sentimentos que se foram. 
Pessoas que deixaram de existir. 
Que talvez nunca existiram. 
Não do jeito que eu pensava.

Fantasmas rondam minha vida.
Atiçam a imaginação.
Exorcizá-los eu preciso
Para voltar à realidade.
Por mais triste e solitária que seja.

Antes assim do que viver no passado.
Tentando consertar o que não tem conserto.
Posto que o amor quando acaba,
Quando em indiferença ódio se transforma,
Nada nos redime, nada nos reabilita.
Nem os cadáveres que teimamos em desenterrar. 





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