quinta-feira, 15 de outubro de 2020



                      


                    sumiço



Fim de carreira, é o seguinte : 

você pode não atender o interfone, 

não responder no wats ap, sumir por quatro 

ou cinco dias, 

e ninguém sentirá sua falta.




                 

                                                  um amor maior que o meu

  


     



Os dias que passam sem deixar vestígios,

pairam como fugazes reflexos 

das coisas que não duraram.

A carne esquecida das venturas e prazeres, 

entretida no inútil engenho de dar sentido 

ao que o fado ou os astros concedem.

Em cada arabesco do caótico caleidoscópio da vida,

o pesar

pelas coisas

que ignoramos e nos ignoram. 

Os amigos, os amores sem rostos, 

meu antigo eu está morto, ou quase. 

Na dissolução dos antigos elos, 

posso ser qualquer coisa. 

Um pária, ou devoto

de uma santa causa.

Por isso escrevo.

Para isso rezo.

Para que o amor de Deus seja melhor 

que o meu.

Um amor que não só conforte, mas cure.



















 

segunda-feira, 12 de outubro de 2020



                           de mal a pior




É duro ver 

que as coisas 

não mudam.

Que as pessoas não mudam.

A política imunda não muda.


Tudo indo de mal a pior.

A gente não controla mais nada.

A economia na mão de quem

não tem nada a perder.

A educação dos filhos na mão

de influenciadores idiotas.

O amor precificado.


Você só vale pelo que tem,

pelo que pode proporcionar.

A juventude arruinada pelas drogas,

chafurdando em valores fúteis. 

A cultura do lixo "bombando".

Mozart hoje em dia morreria de fome.

Shakespeare teria que mudar o estilo,

escrever mais simples.

Pois quem manda no pedaço é...Paulo Coelho.

O que vende é Cinquenta Tons de Cinza, 

Harry Potter.


Certo está o velho safado do Bukowski

quando diz que 

"não há nada para discutir.

Não há nada para lembrar.

Não há nada para esquecer.

Alguns acreditam na possibilidade

de que Deus ajude. 

Outros encaram de frente.

E à saúde destes eu bebo

esta noite."

Eu idem.



                                                   
                                  ser feliz



Ser feliz é tudo o que se quer.

Sendo que normalmente já somos 

ou temos motivos de sobra para ser. 

Sem perceber, sem valorizar.

Começando pelas coisas mais simples. 

Como ter uma vida normal.


Ser feliz é tão simples. 

A rigor, basta não complicar

o que já é naturalmente complicado.

Atentar para a beleza que nos cerca, 

as dádivas, quase sempre gratuitas,

e as mais gratificantes.


No entanto, não fomos feitos para a felicidade. 

A vida nos impõe sua tarefa mágica 

em infinitas provações.

Sob o jugo da perpétua lei de causas e efeitos. 

Que tece e destece o destino.

Cada instante pode ser o primeiro e o último. 


No tempo, que é de um e de todos, como diz Borges,

as vigílias humanas engendram artifícios 

em que o céu e o inferno se locupletam. 

Bem-aventurados os que conseguem ser feliz 

sem precisar de uma coroa de espinho.




















  







 


                                                                                   enganos



 

Quisera ter olhos para ver 

além da dúvida e do diálogo.

Ver além daquilo que vejo e não vejo.

No ensejo da felicidade que não tive,

e que agora sonho que tive.

Naquilo que flui em curso misterioso.

À guisa de lembranças triviais e sagradas 

que à realidade devastada se sobrepõe.

Minha cegueira é cárcere e nostalgia

que se eludem, na espera inútil

daquilo que não tive, e nem terei.


Ah, os enganos. 

Feitos de ecos, sonhos, coisas secretas

que meus olhos não veem. 

Talvez, por preferir o engano

de me deixar enganar

que quem mais amo,

desse amor não é digno.






domingo, 11 de outubro de 2020




                                           carma


  



  

Sou como uma velha espada,

à espera da derradeira batalha.

Elude-se em mim a promessa de que basta

arrepender-se para ser perdoado.

O que não é garantia de impunidade. 

A prestação de contas

faz o carma que cada um carrega.

Se desta ou de outras vidas, eis o mistério 

que leva os santos à fogueira.






 

 

sábado, 10 de outubro de 2020



                                    FÁBULAS






"E conhecereis a verdade, 

e a verdade vos libertará." (João 8:32)


Resta saber qual verdade.

A de Deus ou a dos homens ?

Ora, da soma de todas as coisas, pouco ou quase nada vislumbramos.

O saber que perscruta o tempo e plasma 

os sonhos, é de metal ou pergaminho.

Tudo que nos é levado a acreditar

não passam de fábulas,

conceitos e fundamentos que fogem

a nossos parcos conhecimentos. 

Que o sol brilha exatamente do mesmo jeito

há quatro bilhões e meio de anos ?

Que Deus criou um universo nem começo nem fim ?

E o mais incrível : que se preocupa comigo ? 

Com cada um de nós ? 


Nunca saberemos qual a verdade,

quem fala a verdade.

Criamos os mitos e os ritos, e os destruímos.

A vil palavra se presta à tudo.

Ao próprio paradoxo de um formidável processo

civilizatório, 

consagrado à mentira, as traições. 

Da cicuta de Sócrates ao beijo de Judas em Cristo,

erigimos e renegamos nossa fé 

antes mesmo de o galo cantar três vezes.

 

Em atos, pensamentos, ninguém foge à dubiedade

do livre-arbítrio,

que nos dá a terrível potestade 

de escolher o mal.

A verdade morreu.

Aliás, nunca existiu.

Tudo se insere nas gongóricas mitologias, 

como o fio que Ariadne 

pôs nas mãos de Teseu, 

para que não se perdesse no labirinto.

Porque tudo se perde. 

Tudo é circunstancial. 

Estamos sempre querendo livrar a cara,

enganar, ludibriar, tirar proveito. 

Na vida envolta em metáforas, em que

sinas e reveses se misturam,

nada nos afeta mais do que a traição

daqueles que mais amamos.

Mas não obstante o horror do ciclo natural 

das coisas,

a rosa em outra rosa se transforma.

Na dor, nos arrependimentos,

no olvido,

o passado é o barro com a qual o presente

moldamos.

Não há razão para que dos erros passados

continuemos escravos. 

Desde que mudado, 

não sendo mais o mesmo que errou.


À luz da pristina ciência, não passamos 

de um amontoado de pó.

Coube-nos, por sorte, o dom do raciocínio.

E viver sob a liberalidade de uma doutrina de perdão 

que  se dispõe a anular o passado.

À invenção de fábulas que conjugam os enigmas

da catarse humana, 

cujas palavras mentirosas e pactos rompidos 

alimentam o ciclo interminável de desatinos  

que nos condena à infâmia.




 


 




  










 

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