domingo, 25 de outubro de 2020



                       mal-dito-dia



Mal-o-dito-dia 

raiou

e tudo girou

quebrou

a labirintite

a televisão

o dente

a câmara frigorífica

quem eu queria que lembrasse 

de mim

não lembrou.

Ô, Mal-dito-dia 

A propósito,

Feliz aniversário pra eu...




                                                             desejo



                          


Se eu pudesse formular um desejo,

satisfazer uma única vontade ,

tipo assim,

presente de aniversário,

garanto, juro,

não pediria uma conta recheada,

as mulheres mais lindas.

Tudo o que pediria

seria poder reviver um único dia

daqueles verões mágicos

no Agudo.


Rever minha grossmutter inesquecível,

meus tios, primos, curtir aquele ambiente

gostoso de final de ano,

e sobretudo, 

reaver o espírito harmonioso

que ali imperava, 

de uma verdadeira família,

em que meus pais pontificavam,

rindo, dançando, 

esbanjando o amor que os manteve unidos

por mais de sessenta anos. 

Até o fim de uma vida 

que não existe mais.






 










  


                            minhas outras vidas






Eu vi a chegada dos deuses-astronautas,

que legaram inteligência e barbárie

à humanidade.

Eu fui um dos filhos de Adão e Eva, 

tive filhos com minha própria irmã para assim 

povoar o mundo. 

Eu vi Caim matar Abel por inveja, inaugurando

em grande estilo a sanha perversa da humanidade. 

Fui um homem das cavernas morto

por um tigre de sabre.

Eu vi a água subir até cobrir o topo 

das montanhas, da proa da arca de Noé.

Eu fui um animal que não existe mais. 

Fui animal,

verme, pó, até perdi a conta de quantas vezes, 

só não fui Buda.

Eu vivi na civilização mais evoluída que já existiu

na face da terra, que no entanto,

afundou no meio do Atlântico pelos motivos de sempre.

Cuja cultura os gregos resgataram.

Eu fui um dos milhares de escravos

que construíram as sete maravilhas do mundo,

e muito mais.

Que remavam sob chibatadas 

nas grandes esquadras, e morriam feito moscas

nas grandes batalhas. 

Que edificavam, plantavam, trabalhavam, 

como trabalham até hoje,

sob o tacão dos poderosos.

Fui guerreiro de vários exércitos, morto,

esquartejado, queimado, empalado, torturado,

fui herói e covarde, apodreci em campos de batalha,

como também morri gloriosamente,

como um dos bravos espartanos que tombaram

em Termópilas,

na mais épica e desigual batalha de todos os tempos.

Em que os 300 comandados por Leônidas

contiveram

por longos e sangrentos três dias,

o exército persa de mais de 300 mil homens 

reunidos por Xerxes.

Mais sorte teve Fernão Cortez, que viu 

do alto de seu cavalo - este que vos fala -

um milhão de aztecas se curvarem placidamente,

acreditando estar diante de um deus materializado.

Eles que nunca haviam visto um cavalo.


Meninos, eu vi e participei de tudo o que possam

imaginar, ao longo de minhas vidas. 

A ascensão e queda dos maiores impérios. 

Povos inteiros sendo dizimados, 

genocídios, holocaustos, em nome das causas mais abomináveis.  

Vi a flamante Cartago banhada em sangue,

Treblinka, Hiroshima...

Vi o melhor e pior da raça humana.

Fui um dos ladrões crucificados ao lado de Cristo -

o que não pediu perdão.

Fui mártir, covarde, experimentei todas as mortes, 

liderei e desertei, traí e fui traído, 

amei,

fui amado, odiado, uma infinidade de vezes.

Vivi centenas de vidas mas, querem saber ?

Nunca vi Deus.





 



  





  



 


   um dia como outro qualquer





Um dia como outro qualquer.

Sem nada de diferente.

Sem nada de especial, como um dia já foi. 

Na casa de meus pais.

Quando ainda tinha família.

A vida toda pela frente.


Agora que sou só eu e eu mesmo,

não tenho motivos especiais para comemorar

o dia dos meus anos.

Além dos de sempre.

Como, aliás, sempre faço.

Não exatamente comemorar, mas ter 

consciência de que bem ou mal,

a vida tem sido boa.

Tenho me virado sem depender de ninguém.

Sem precisar de ninguém.

E hoje em dia, finalmente,

sem esperar nada de ninguém.

Posto que as expectativas frustradas 

é que matam aos poucos.

E as que mantenho hoje são absolutamente

realistas. 

Só dependem de mim.

De mim e da companhia luxuosa dos joões de barro, sabiás, bentivis, 

que me saúdam infalivelmente, mal rompe a manhã.

Como nesse dia dos meus anos.













sexta-feira, 23 de outubro de 2020

  






                cadáver insepulto





Nada mais pode ferir-me.

Nem as velhas coisas estimadas, enfim exorcizadas. 

Coisas esquecidas que durarão para sempre, 

estranhamente eternizadas.

Mas agora, submissas como tácitos escravos.


Paira sobre mim a aura do irredimível passado,

que resiste em sonhos persevagantes,

que se perdem na vertigem do tempo.

Estou pronto para o que der e vier.

Não temo a solidão, pois há muito já estou só.

Não temo o sofrimento, o esquecimento,

posto que purificam.

Não temo o que virá, o que provavelmente

não entenderei.

Deixei de sonhar-me.

O destino irrevogável encena a trama que se esgota.

Em que o amor jaz como um cadáver insepulto.

Que já não cheira nem fede.









                                                  compensações





Saúde

Trabalho

Poucos, porém sólidos,

afetos.

O que mais se pode querer

da vida ?


Nada do que se ganha de graça

presta.

Pois não se dá valor.

Acostuma mal.

Nunca satisfaz.


Nunca ganhei nada 

de mão beijada.

Nem o que me era devido.

Mas fui largamente compensado.


Com saúde.

Trabalho.

Poucos, porém sólidos,

afetos.




quarta-feira, 21 de outubro de 2020




                                                  momentos





Momentos. 

Então,

é só o que ficou ? 

Vagas lembranças de uma história

de quase vinte anos 

reduzidos a...momentos. 


As milhares de palavras

que busquei para tentar entender 

e assimilar

um fim tão amargo,

você só precisou de uma

para matar a charada. 

Momentos.

Pura e simplesmente momentos, e como tais,

efêmeros,

descartáveis.


O que explica também, é claro,

o distanciamento,

a frieza, a indiferença que tanto 

me machucaram.

E tantos versos loucos suscitaram. 

Como pude ser tão imbecil ?







  

Postagem em destaque

                            a noite eterna a noite eterna chega devagar a vida passa devagar até tudo passar e você de repente acordar sozin...