terça-feira, 5 de julho de 2022


 


                     o beijo de Judas





O defenestrar-se repentino,  

em inexorável desdouro.

O vazio inapelável.

Desaparecer no rebojo da alma.


O fim guarda todos os mistérios.

Tudo o que foi e o que podia ter sido.

Guarda as coisas esquecidas, as noites insones,

as horas de alegrias e angústias.

Guarda os caminhos ignorados, o começo do fim.

Ferido de amor e de morte.


O fim chega assim, grave, pacífico, duro.

Chega para lembrar que a gente não é nada.

Que tudo se desfaz.

Às vezes da maneira mais sórdida.

Ao esquecimento o fim remete.

Tangido e evadido.

Vadio e fodido.

Sob mil coisas impressentidas desfigurado.

Como um rio que se banha em seu lodo.


Chegar ao fim sem nada poder fazer, sem ter o que dizer,

sem direito a nada, e, súbito,

compreender,

que o seu tempo havia acabado.

Que outras razões não havia,

senão pura e simplesmente,

o amor acabado.

De modo a subtrair daquela vida 

a essência que a mantinha. 

Um ausentar pior que a morte, urdidura de cansaço

e traição. 

O fim é o beijo de Judas. 











 

domingo, 3 de julho de 2022




                      ALMA AVENTUREIRA






Com amargura se perdem os prazeres das coisas terrestres.

É triste já não acalentar os antigos desejos e sonhos.

Desaprendidos os costumes que mal foram aprendidos.

É nesse morrer aos poucos que tudo se perde no vazio. 

A vida abandonada como um brinquedo quebrado.


A correnteza eterna leva tudo de roldão.

A qualquer tempo, em qualquer idade, retira-se de nós

o que nos pertence.

A condição de não-ser antecede toda despedida.

Amar o que não existiu, em um longo aprender,

eis o prêmio.

Engravidar a terra, fecundar as dores, eis o legado. 

Sem diásporas nem louvores, as cegueiras 

e ausências habituar-se.

Para que a alma aventureira nunca se perca,

como um marinheiro que sempre regressa.






sexta-feira, 1 de julho de 2022

                   vivendo pela metade





De infâmias, egoísmos e traições somos íntimos.

Caminhos cruzados remontam à Cristos crucificados.

À luz do provisório entendimento, 

entre a constância e a tangência do Divino 

pensamos maturar o futuro.

Sem ter discernimento para tal. 

Vivendo pela metade, amando mal, traindo princípios, 

laços afetivos.

Sob os olhares de deuses implacáveis. 












 

quarta-feira, 29 de junho de 2022



                                                     eu sou o que fui




Eu sou aquele que sobrevive em louvor 

a memória seletiva.

Perdido e resgatado em meio as impurezas do Hades.

Amante do corpo e do intelecto como um

presunçoso chevalier servant.


Eu sou o filho pródigo a espera do pai.

Atrás de algum resíduo de Deus num mundo

de lobos e cordeiros metafóricos. 

Em que a própria mentira é a única verdade.


Eu sou aquele que deixou o abismo ser 

meu melhor amigo.

O alfa e o ômega de uma liturgia de enganos.

Em busca do que ser para ter paz.


Eu sou o sonho de pedra, Orfeu em busca de Eurídice, 

o itinerarium mentis de amores inconclusos.

Eu sou o que fui, quando não era eu.





 



                  nada permanece





Toda longa história cansa.

Tudo o que a gente quer escapa.

A sorte é relapsa.

Nada permanece, nem a sorrelfa, 

nem a socapa. 


 




                  abdução





Tememos por nossos filhos, num mundo

sem poesia,

sem decência,

sem amor.

Em constante vigília de impotência,

reduzidos a mera condição de espectadores,

testemunhamos de cadeira a lenta 

e inexorável  

abdução, 

daqueles que nos são mais caros.




 

terça-feira, 28 de junho de 2022

      


                                cadáver ambulante



 


Perto de nós alguém tomba.

Ao largo, o crocitar de um corvo dá as boas vindas.

Especula-se que tenha se suicidado.

Motivos não lhe faltavam.

Abandonado pela mulher, cheio de dívidas, distante dos filhos,

no fundo não passava de um cadáver ambulante.

Como tantos que andam por aí.

Carregando as dores do mundo.

Logo será esquecido, como se não tivesse existido.

Para viver para sempre. Como pó.





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