segunda-feira, 27 de março de 2023





Não faz falta

esse amor que maltrata.

Essa coisa que morde e assopra.

Arrebata e malbarata.





 




                                 gente torpe



Invejáveis são as coisas inanimadas, que não pensam,

não sofrem.

Diferentemente de nós, pobres humanos, cujos dons

não nos tornam menos imundos.

Porque o que nunca faltou é gente torpe no mundo.

Ser falho, como todo humano,

não nos isenta de culpa.

Pois para o mal não há desculpa.

Todo dolo há que ser punido ou purgado,

para que não se perca a noção 

do certo e do errado.








 









 






 






 

domingo, 26 de março de 2023


               sem palavras





Palavras não são importantes.

O mundo seria melhor se ao invés de falar,

o ser humano

grunhisse, latisse.

Miar seria meio estranho.

A boca serviria apenas para comer e beijar.

Muxoxo incluso.

Assim, automaticamente, a mentira perderia terreno,

olha que beleza.

Os olhos assumiriam o protagonismo, 

até aquele famoso olhar de peixe morto se valorizaria.


De uma certa maneira, seríamos como eternas crianças.

Nos valendo do gestual, nos comunicando por mímica, 

espasmos, aderência.

Palavras só atrapalham.

Estragam tudo.

Sem elas, o amor seria muito mais confiável. 

As atitudes prevaleceriam, como deve ser.


Ah, mas as mãos, as mãos seriam o novo alfabeto.

O lindo alfabeto em libras.

Sem duplo sentido, dissimulações, papo furado.

Poderíamos, afinal, amar sem medo.

Sem medo das mentiras, falsas promessas.

Das tergiversações que tanto o desacreditam.





   














                solitário, mas vivo





Levo minha vida como um peixe 

num aquário de vazios.

Vivendo literalmente de migalhas, circunscrito

a vagas lembranças,

entretido com a inacessível paisagem exterior.


Sou como um peixe capturado pela malha fina

do arrastão da vida.

Que procura adequar-se ao exíguo espaço

em que tempo e memória se confundem.

Solitário, mas vivo.

Vivo, talvez, porque solidário.





 



                           contra fatos, não há argumentos



É fato que 

quem vai embora, não embolora.

Máquinas incríveis e risíveis se locupletam.

Finalidades evocam prioridades.

O sono leve não perde a hora.

Artifícios encobrem vilipêndios.

Primores de proezas suscitam esplendores agônicos.

Mercenários fazem o trabalho sujo.

Báratros primam pela eficácia. Pena que extintos.

Contra fatos, não há argumentos.





 



                  balé de essências



A sutil ordenação das coisas confunde e arrebata.

As relações cortantes urdem abismos.

Beata ignorância abriga fábulas infamantes.

Crenças malogram mas renascem, eis o paradigma recorrente.

A pressa de revelar-se introduz o sémen novo.

Para que o postergado sobreviva.


A vida passa filtrada em sinfonias que não se decifram.

Sistemas e estruturas subjugam o homem

que a si mesmo subjuga.

O silêncio dos livros sonega o conhecimento que concilia

ciência e a arte de viver.

Feliz de quem usufrui de seu balé de essências.







 

sábado, 25 de março de 2023



                     poema inacabado


                      Stèphane Mallarmé

           


A vida passa arrancando pedaços, chutando latas,

cravando os dentes na carótida.

Em meio à coletânea de cenas fúnebres

e dias amargos,

o esquecimento acalma o coração.

A ignorância, como acalanto, arrefece desesperos

e receios.

Não saber é uma benção.

Mantém o equilíbrio das coisas.

Nossa pequenez ancora-se no desconhecido.

O traço seco do destino tem olhos de águia. 

A aventura humana se esgota e retorna a matéria

no limiar do insólito.

Na luta fracassada, na farsa grotesca, 

a busca do inalcançável se reveste de fugazes sutilezas.

As fronteiras do mundo são estreitas.

O corpo nos trai.

Quando menos se espera, o fantasma da página em branco

de Mallarmé nos abarca.

A vida acena como um poema inacabado.






 

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