Não faz falta
esse amor que maltrata.
Essa coisa que morde e assopra.
Arrebata e malbarata.
gente torpe
Invejáveis são as coisas inanimadas, que não pensam,
não sofrem.
Diferentemente de nós, pobres humanos, cujos dons
não nos tornam menos imundos.
Porque o que nunca faltou é gente torpe no mundo.
Ser falho, como todo humano,
não nos isenta de culpa.
Pois para o mal não há desculpa.
Todo dolo há que ser punido ou purgado,
para que não se perca a noção
do certo e do errado.
sem palavras
Palavras não são importantes.
O mundo seria melhor se ao invés de falar,
o ser humano
grunhisse, latisse.
Miar seria meio estranho.
A boca serviria apenas para comer e beijar.
Muxoxo incluso.
Assim, automaticamente, a mentira perderia terreno,
olha que beleza.
Os olhos assumiriam o protagonismo,
até aquele famoso olhar de peixe morto se valorizaria.
De uma certa maneira, seríamos como eternas crianças.
Nos valendo do gestual, nos comunicando por mímica,
espasmos, aderência.
Palavras só atrapalham.
Estragam tudo.
Sem elas, o amor seria muito mais confiável.
As atitudes prevaleceriam, como deve ser.
Ah, mas as mãos, as mãos seriam o novo alfabeto.
O lindo alfabeto em libras.
Sem duplo sentido, dissimulações, papo furado.
Poderíamos, afinal, amar sem medo.
Sem medo das mentiras, falsas promessas.
Das tergiversações que tanto o desacreditam.
solitário, mas vivo
Levo minha vida como um peixe
num aquário de vazios.
Vivendo literalmente de migalhas, circunscrito
a vagas lembranças,
entretido com a inacessível paisagem exterior.
Sou como um peixe capturado pela malha fina
do arrastão da vida.
Que procura adequar-se ao exíguo espaço
em que tempo e memória se confundem.
Solitário, mas vivo.
Vivo, talvez, porque solidário.
contra fatos, não há argumentos
É fato que
quem vai embora, não embolora.
Máquinas incríveis e risíveis se locupletam.
Finalidades evocam prioridades.
O sono leve não perde a hora.
Artifícios encobrem vilipêndios.
Primores de proezas suscitam esplendores agônicos.
Mercenários fazem o trabalho sujo.
Báratros primam pela eficácia. Pena que extintos.
Contra fatos, não há argumentos.
balé de essências
A sutil ordenação das coisas confunde e arrebata.
As relações cortantes urdem abismos.
Beata ignorância abriga fábulas infamantes.
Crenças malogram mas renascem, eis o paradigma recorrente.
A pressa de revelar-se introduz o sémen novo.
Para que o postergado sobreviva.
A vida passa filtrada em sinfonias que não se decifram.
Sistemas e estruturas subjugam o homem
que a si mesmo subjuga.
O silêncio dos livros sonega o conhecimento que concilia
ciência e a arte de viver.
Feliz de quem usufrui de seu balé de essências.
poema inacabado
A vida passa arrancando pedaços, chutando latas,
cravando os dentes na carótida.
Em meio à coletânea de cenas fúnebres
e dias amargos,
o esquecimento acalma o coração.
A ignorância, como acalanto, arrefece desesperos
e receios.
Não saber é uma benção.
Mantém o equilíbrio das coisas.
Nossa pequenez ancora-se no desconhecido.
O traço seco do destino tem olhos de águia.
A aventura humana se esgota e retorna a matéria
no limiar do insólito.
Na luta fracassada, na farsa grotesca,
a busca do inalcançável se reveste de fugazes sutilezas.
As fronteiras do mundo são estreitas.
O corpo nos trai.
Quando menos se espera, o fantasma da página em branco
de Mallarmé nos abarca.
A vida acena como um poema inacabado.
a noite eterna a noite eterna chega devagar a vida passa devagar até tudo passar e você de repente acordar sozin...