sexta-feira, 12 de maio de 2023


                        a espera do que não virá





A espera do que não virá é longa.

O que fazer do tempo, ou de nós mesmos,

de todos os falhados, o evolver das coisas,

a brisa da espera afadigada de soprar -  haverá algo 

do rancor antigo nas aflições de hoje ?


A espera do que não virá é infinita.

No desfile dos dias, o aboio das vespertinas ausências

se sobrepõe a todos os clamores.

A solidão veludosa das ruínas em que tudo se encerra

remonta à eloquentes mutismos.

Como alguém que se despede.

Como tudo que flui e o verme corrói.

O amor em pouso doendo na alma.

A espera do que não virá.





domingo, 7 de maio de 2023



                  o maior crime é viver



           


Poucos tem a sorte de Ulisses, cuja mulher-rainha 

manteve-se fiel por longos dez anos.

Fez-se deus de músculos e garras para conjurar

a confusão voraz de ser e não ser humano.

O senso do dever não resolve o teorema do mal 

que faz bem.

O maior crime é viver.

A entrega que não se entrega devora pupilas e pedras

de fugazes castelos.

Sossega, irmão, o mal compensa.

A beleza exasperada induz a tentação que levou o padre

a perdição.

Menininhas sem noção atiçam a carne, no alvoroço

dos desejos sonegados.

Narcisos descontentes amam orgulhos humilhados.

Confuso e autocomplacente, eis o meu fardo.

A parábola das façanhas arbitrárias confunde o amor,

como peixes asfixiados.

O bolor dos desenganos retorna em sebes novas.

Quem me curou das dores de amar não sabe amar.

Todo sonho que não aconteceu dura além de seu termo.

A banalidade da existência é a maior das riquezas.

Gatos e ratos são irmãos que se desconhecem.

É tempo de ignorar as ignorâncias para que possamos

tolerar os ignorantes.

Beatos regam as balsaminas do desespero. Em vão.

O prazer lavada de remorso é tão pouco venerável

quanto a velhice.

De que valem as afeições não correspondidas ?

Não há melhor companhia que um livro e um bom vinho

( no dizer de uma alma velha).


 







sábado, 6 de maio de 2023



Lavo-me da vida

sempre suja.

Esfrego, esfrego e não me limpo

da sujeira que me faz humano.

Desejo, luxúria, usura.


 



Não sou solitário, anti-social.

Sou tão somente seletivo.

E faço gosto que a reciproca 

seja verdadeira. 







                     venturosa história





 

Tive toda sorte do mundo.

Não nasci desnaturado, aleijado.

Não me perdi em berço de ouro 

nem chorei por abandono.


Tive toda sorte do mundo.

Nunca precisei mais do que tive.

Afeto, alimento, nunca me faltaram.

Meu anjo da guarda sempre esteve comigo.


Tive toda sorte do mundo.

Mesmo tudo perdendo, sempre me recuperei.

Não sou rico mas nada me falta.

Até um novo amor encontrei.


Tive toda sorte do mundo.

Com mais sorte do que juízo.

Oxalá o epílogo esteja à altura

de tão venturosa história.









                 sem respostas



Amanhece.

Nada é o que parece. 

A vida reinventa seu exuberante inferno.

Reunindo e apartando.

Ferindo e curando.

Abrindo e fechando portas.

Articulando e desfazendo.

Recompondo-se sem  distinguir

o certo e o errado.

Alteando-se ao desumano convívio.

Transitando entre exílios e ardis sexuais.


O eflúvio das manhãs irrompem em meio

a embriões e eternas controvérsias.

Qual a receita para os dias mais ásperos ?

Qualquer tempo é tempo de nascer e de morrer.

Qualquer tempo é tempo de fazer valer a pena.

Qualquer tempo habita um tempo para viver

e que foi vivido.


Pequenas fugas, doenças ocultas, a vida desmorona

nos elementos que ignoramos.

O que passa decifra-se até as lindes do inconsciente.

O mundo de cada um deixa-se possuir pelo que degrada,

pelo amor que se vinga,

quando o disfarce já não serve,

quando as delícias punem,

e a vida dadivosa se desfaz.


Amanhece. Nada é o que parece ou pareceu.

Os males de nascença, os laços que consomem,

o amor que trai. 

A manhã engravida o dia de mortes sem morte.

Dia que se interroga e entardece sem respostas.

A vida distribui e recolhe.

É tudo que se pode saber.
















 



                    os engenhos da paixão   



                 



Inquiro os insolentes engenhos da paixão.

Se tudo se limita aos apelos do sexo.

Se a mentira é doce como mel.

Se o futuro é risonho e bem-aventurado.

Se a imaginação é melhor que a realidade.

Se ninguém é confiável.

Se o penhor da entrega é chorar as lágrimas 

de todos os olhos.




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