sábado, 1 de julho de 2023



Hoje está tudo bem.

Amanhã, já não sei.

A vida se repete

até chegar ao impasse,

ou a um ponto sem volta.

Que é quando as pedras rolam.


 





O urubu me espreita,

enquanto bica a carcaça de um peixe.

certo ele, pensei.

Um olho no gato, outro na sardinha. 




                            

                        meu melhor acalanto





Lembro do silvo agudo dos maçaricos voando 

antes das tempestades.

Os eucaliptos encharcados tremulando ao vento.

O cheiro luxuoso da chuva empapando a terra.

Os andorinhões  procurando abrigo nas árvores.

O céu inteiro prestes a desabar ao rebombar das trovoadas.

As poças se formando no quintal,

que depois ia chapinhar sob o alarido alegre

dos meus dois cães de guarda.


Sempre gostei da chuva. Lembro com carinho

das tempestades repentinas dos escaldantes verões 

da minha infância gaúcha, 

e mais tarde, da garoa gelada das manhãs curitibanas. 

Os pingos ecoando na rua, batendo na vegetação,

ainda são o meu melhor acalanto.

A chuva lava a sujeira da vida. 














  

sexta-feira, 30 de junho de 2023



             poema que nem poema é





Há laburnas, colunatas louras, 

enxame de mãos africanas,

fardos para carregar,

ataúdes de anões,

turbas romanas.

Vestidos lunares, véus funerários,

deuses provisórios, sílabas inteligíveis.

Há o preto e o escuro, convém não confundir.

O preclaro e o austero. A grade trancada, 

fontes de mel.


Há o cavalo com cor de ferrugem.

Pequenas franjas sangrentas.

A ferida e a gangrena. Bocas sedentas. 

Metais ardentes.

Mágoas de Deus. Lençóis opressivos.

Enxames de moscas novas.

Pinhas de abetos.

Qualquer coisa para lembrar.

Vestes e afagos.


Há oferta e comprador.

Feldspato e cristais apodrecidos.

Ondas de juníperos. 

Calafrios da noite. Rijas almas corrompidas.

Há cordilheiras de granito.

Serpentes prateadas. Relvas crestadas.

Carne tostada sobre pedras.

Bocetas de jovens prostitutas.

Cassetetes e coronhadas.


Há sobreviventes.

Nossas vidas.

E esse poema 

que nem  poema é.








       escuridão



No amplo amplexo humano, todo trâmite consiste

em frustrar as engrenagens do mundo.

Em austero escambo com o acaso, tateamos em busca

de benesses e bonanças que curem.

No frescor de sóis que morrem, o engodo da convivência 

sem conflitos renomeia as trapaças. 

Com letras que mal foram escritas, cada sílaba

é um ato de sabotagem.

Banida a esperança forjada em exílios, a palavra estéril

encena a farsa que guarda futuros.

De suas raízes, o amor fraticida concebe o impensável.

Procurando partilhas que não nos pertencem.

A mutante alegoria do tempo produz anomalias em série.

Inundando leitos e pátios monótonos 

como um domingo de chuva.

Certas escuridões são mais escuras que outras.



 




 












              às vezes você pensa estar ajudando a pessoa,

              mas está só criando um parasita.


Velho que se engraça ou se apaixona por novinha

precisa estar consciente de que vai ter que gastar,

e ainda por cima levar chifre. 

É pegar ou largar.


                     não sei o que é pior : 

                   se agonia de insistir 

                   ou a dor de desistir


Agora ou jamais.

Quando a oportunidade é única.



quinta-feira, 29 de junho de 2023



                   às margens do abandono





Ninguém perde por esperar.

A não ser pelo que já está perdido.

Ou nem começou.

Já não tem pressa aquele que caminha 

às margens do abandono


Abro as portas do coração para o sol da imaginação

A penúria cercada de tesouros preenche os espaços 

vagos do pensamento.

Às vezes penso que vou viver para sempre,

sem saber que já morri muitas vezes. 

Vezes demais.



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