sábado, 19 de agosto de 2023



                    o correlato e o aludido






entre o canto e o bailado

entre o frio e o molhado

entre o livre e o amarrado

entre o liso e o escarpado

entre o aclamado e o coibido

entre o caiado e o carpido

entre o contido e o exibido

entre o inocente e o condenado

entre o roubo e o delegado

entre o rico e o pé rapado

entre o rejeitado e o anuído. 

entre o amigado e o casado

entre o achavascado e o mal-ajambrado. 

entre o manco e o sarado

entre o asseado e o puído

entre o acalorado e o abrochado 

entre o novo e o remendado

entre o vestido e o pelado

entre o coroinha e o prelado

entre Leblon e o Corcovado

entre o cupido e o pecado

entre o amado e o odiado

entre o loquaz e o calado

entre o lindo e o esfarrapado

entre o opaco e o iluminado

entre o folgado e o apertado

entre o inocente e o condenado

entre o libertino e o abnegado

entre o limbo e o sombreado

entre o perdido e o achado

entre o gremista e o colorado

entre o alvoroço e o estagnado

entre o encurralado e o afrescalhado

entre o chanfrado e o bitolado

entre o criado e o crismado

entre o catado e o cavoucado

entre o coitado e o azarado

entre o azedo e o ardido

entre o brado e o alarido

entre o surdo e o mudo

entre o arcano e o bardo

entre o abortado e o cagado

entre o evadido e o ungido

entre o certo e o errado

o correlato e o aludido

estão sempre mudando de lado.



 


 



 













                 a vida de concreto



O concreto empareda o abstrato, congela os sentidos.

Paredes de concreto abraçam carências severinas.

A vida de concreto come a fome.

Deixa-se habitar em cova grande.

Predisposta às litanias infames, em ventres lascivos. 

Algoz de silenciosos martírios.

O gozo das orgias manufaturadas vagam no tempo gelado.

Ríctus de medo se cumprem com vagar, sob arquiteturas 

que se fundem.

Com vagar, Deus e o mundo conjecturam cláusulas 

humilhantes.

O dissolver de brasões suga a memória espandongada

de revolta.

O concreto cala o silêncio, nutre o amor com coreografias 

obscenas.

Os fatos calam-se em minuciosas certezas.

Para continuar, é preciso conhecer o caminho que conduz

às altas torres de inumeráveis fábulas.

Calam-se as certezas, as palavras ferinas e duras.

Luzes obscuras se multiplicam.

Exéquias cobrem a nudez do amor.

Paredes de concreto bebem o fel entre cantos e ascos. 







  

quinta-feira, 17 de agosto de 2023



               meu ser me bole




Meu ser me bole.

Ora se fecha, ora se abre.

Entre dias humanamente cinzentos

e o sereno gosto de viver.


Sou como sou, sem mais nem menos.

Nada me falta, além do que perdi.

O que eu tinha, sem saber.

A ilusão de ser feliz.


Meu ser me bole.

Já não estranha nem renega 

o apego ao remanso, 

o gosto pela solidão macia

à espera de um fim tranquilo.





                           a fadiga da vida



Inocentes

Porque assim nasceram

Em graciosa desdita ou firme sortilégio

Talhados em imperfeitas etimologias

Sob o tribuno das conveniências

A violência harmônica do mundo engendra

pequenos apocalipses

A desrazão e o desespero demarcam a condição humana

O bem viver prescinde de referendos que sangram

O amor há que se armar

O tempo para tanto é escasso

Os corpos reivindicam a primazia das indecências

Vêm bater em longas fagulhas, exalando feéricos furores

Luzes de braseiros acossados por loucas ternuras

batem à porta em noites infelizes.

O frenesi dos sentimentos nunca está sozinho.

Planos destruídos, desejos corrompidos desovam queixumes

moribundos.

À força, as duas pontas do tempo retomam o cortejo

ancestral do recomeço.


"A vida se consome na fadiga sem saída" (O Homem Restolhado/

Gaston Miron)







 







                     o canto do sabiá





                            foto Ivan Berger


um canto canoro 

no espesso arvoredo

salta de galho em galho

executado à base da goela

dispensa palavras e maestro

em afinado solfejo

ecoa em espirais

ilesa solitude

na mais plena

inocência e virtude

nem Bach conseguiu imitar

o canto do sabiá.





                         spirit de porks



O drama está para a tragédia como a farsa para a comédia.


          Ladrão que é ladrão,

          de profissão,

          não escolhe ocasião.


Há quem diga que o amor

é um estado de espírito.

Spirit de porks.


             O desejo obscuro

          gosta do escuro. 


Essas moças quase nuas

podem ser tudo.

Menos tuas...


            

quarta-feira, 16 de agosto de 2023




                  o rosto no espelho





Um homem só em sua casa, 

assombrado pelo delicado tempo que tudo enovela,

encara o rosto de um suicida no espelho.

Saturado de uma vida que não entende.

Perdido em paraísos artificiais.

Faz-se de forte, ignorando a besta consoladora

dos aflitos.

Rastros de passos erradios circundam o caminho

sem volta.

A solidão é o acalanto que mascara as mágoas

possuídas por dádivas descontentes.

O agora é onde o eco inverte a fala, e o rebojo 

das coisas insensatas ignora o extinto.

Nos hemisférios da alma, a desagregação da vontade

constrói se desmanchando.

Continuar, emparedado pelo tempo, adquire ares de façanha.

Mas o mundo devassado e imperfeito assim o exige.

Que o rosto no espelho esqueça quem era.









 

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