segunda-feira, 1 de abril de 2024



                  tudo o que temos de mais caro





Não aconselho ninguém a voltar onde foi feliz um dia.

Nem onde nem com quem. 

Porque nunca é a mesma coisa.

Tudo o que encontrará são ruínas, despojos, fragmentos

do que foi um dia, e não há nada que se possa fazer

a respeito.

Tudo passa, tudo acaba, tudo se esvai na mixórdia

da aventura terrestre. 

Mesmo as lembranças com o tempo traem a memória, 

em sensações longínquas e piedosas,

desvirtuando o próprio lembrar e esquecer.

O halo das fantasias mascara todas as coisas finitas,

glorificando ecos e miragens em detrimento do natural

desencanto com os seres e as coisas.

Daí o quase pesar de rever ou retornar às origens.

Por isso não faço gosto de passar por antigas moradas,

nem sinto vontade de reencontrar antigas namoradas,

e até reluto em rever velhos amigos.

Não por esquecimento ou falta de apreço, longe disso.

Prefiro, simplesmente, ficar com a imagem de como tudo era.

Antes que o tempo nos roubasse tudo o que temos

de mais caro.





 









 





domingo, 31 de março de 2024



                      juvenilidades anacrônicas





Minha grande luta é ter consciência de mim mesmo.

Para não esquecer a amplidão que se retrai. 

A vida de blefes e mentiras.

A consciência range e come as próprias entranhas.

É quase impossível ter os pés no chão, enquanto 

a impulsividade sabota a razão.

Vertigens do passado revolvem a solidão premeditada.

Digo adeus mas logo mudo de ideia.

Sou o que sou.

A longa vida de obscuridade obsidia lacunas despreocupados.

É tarde para fugir de mim mesmo.

Fui covarde, mas tive sorte.

Sai ileso do sofrimento que desencaminha e arruína.

Mais padeço de juvenilidades anacrônicas 

do que de consciência pesada.







sábado, 30 de março de 2024



                  o Deus que ninguém nunca viu





Espantoso que ninguém nunca o tenha visto.

Estando em todos os lugares, como se costuma dizer.

Nas mais diversas formas. Disfarces, diria.

De onde tiraram a ideia de que Deus teria um rosto, 

um corpo,

como sugerem tantas telas famosas ? 

Ora, os seres e as coisas são apenas detalhes insignificantes

no universo grandioso,

cuja perfeição só os estúpidos atribuem ao acaso.

A começar pela própria vida na Terra, só possível

graças a uma série de coordenadas que vão muito 

além de simples milagres, desses que a gente 

vê todos os dias.

Senão, vejamos.

Segundo dados validados pela própria ciência agnóstica,

por diferença de 1% mais perto ou mais longe do Sol,

a Terra seria praticamente inabitável, devido 

as temperaturas extremas.

Se sua rotação fosse mais acelerada, seria fustigada por 

tempestades e ventos furiosos.

Se fosse mais lenta, a exposição mais prolongada ao Sol

elevaria a temperatura a 60 ou mais graus de dia, 

e as noites seriam gélidas, com mais de 40 graus negativos.

E o que dizer da lua, cujos ciclos regulam 

os oceanos, os ventos, o clima ?

Sem falar no papel fundamental do gigante Júpiter,

cuja força gravitacional funciona como um escudo

para nosso planeta, contra tudo que é ameaça celeste.

Um grau mais próximo do Sol, e Vênus seria a contemplada.

Um mais longe, Marte.

Tudo magnificamente orquestrado pelo Deus 

que ninguém nunca viu.






 






                         a sina humana




O indecifrado,

que tudo sabe e nada vê,

além da pletora das coisas inaudíveis,

existindo no que nunca foi vivido nem concebido,

       no ainda por nascer,

acontece sempre de novo,

       emergindo,

como trigo maduro prestes a ser colhido,

para erguer novos muros.

Eis a sina humana.





                     a margem da vida




Existir, inexistindo.

Viver, evitando a vida.

A velhice avança, lentamente,

como um navio na curva do horizonte.

Óh, mocidade alada, tão cálida, tão breve.

Consoladoras lembranças gravam o caminho 

de volta para casa.

Escurece aos poucos, fechando o presente

em que a fera dorme.

A margem da vida, a paz interior

brinca de ser triste.






 

sexta-feira, 29 de março de 2024



             quando o psíquico está mal





Em Nova Iorque ou Pindamonhangaba,

alguém sonha com Londres.

Perversões inofensivas galgam o rol dos atributos.

Se a compreensão é a graça principal do estilo, 

a escrita é a arte da deturpação.

Juízos impessoais pecam por impropriedade intelectual.

Quem julga, se condena.

Por justiça e paz, as maiores atrocidades se cometem.

A esperança é o suvenir da fé.

O que são os anos diante da eternidade ?

Nada mais elegante que a ostentação conscienciosa.

Distrações andam em conformidade com a antena occipital.

Não é a aquisição de uma coisa que nos faz dono dele.

Do coração, por exemplo.

A falta de argumentos engendra repertórios confusos.

Liberal é aquele que não faz distinções quando se trata

do próprio deleite.

Gente superior não se priva da razão, apenas faz concessões.

O contentamento humilde afronta o regozijo.

A humildade é a mais graciosa desdita.

Melhor do que ser eterno é ser imortal.

É da natureza humana nadar contra a correnteza.

Olhou-se com tanto desprezo que acabou por conhecer-se.

Afinal, pode-se viver do que não pode viver sem viço ?

É melhor ser do que existir.

Pois é, isto não é poesia.

Quando o psíquico está mal,

melhor ser literal.




















 



                   velho é uma pinóia !



 


Velho.

Devo me envergonhar por estar velho ? 

Me desculpar por já não poder suprir,

corresponder as sempre elevadas expectativas

alheias, mormente dos entes queridos ?

Tanto se fala sobre racismo, homofobia, xenofobia, 

mas nada se compara ao estigma da velhice. 

"Vai se foder, velho do caralho !", dia desses 

me xingaram no trânsito.

"Vê se se enxerga, velho tarado", rosnou a garota com a qual

tentei puxar papo, despretenciosamente (nem tanto, nem tanto)

numa rede social.

Pelo visto, devo me desculpar por estar vivo.

Tudo bem, sei que há velhos chatos, ranzinzas, sem noção,

sem senso do ridículo,

e me pergunto se não serei um deles.

Afinal, é o que trato com os mais jovens sugere.

Para eles, nós, anciãos, somos antiquados, ultrapassados, 

caretas,

para não dizer imprestáveis.

Porque assim são vistos aqueles velhos que já não tem

recursos, muitos dos quais sendo largados em asilos,

que os ingratos aproveitadores chamam, eufemisticamente,

de casa de repouso.

(Ainda) não é o meu caso, graças a Deus.

Sou um velho saradinho, por assim dizer, que põe muito

novinho no chinelo, segundo elas.

Até quando não sei, mas enquanto o coração aguentar,

velho é uma pinóia ! 












  







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