terça-feira, 27 de agosto de 2024



                sentimentos que procuram sentimentos





A gente não faz ideia da força que tem.

Não tem noção do que é capaz, quando posto à prova. 

Não só em função do prodigioso instinto

de sobrevivência,

presente em todas as espécies, mas, sobretudo,

pelo poder imanente dos sentimentos.

A força de querer, amar, odiar, a tudo transcende. 

Na criatura que se divide em proezas e utopias.

Na fera reprimida e contida por grades seculares.

Naquele que luta e não se entrega,

que se revolta e se enternece,

que ri e chora, 

que educa e doutrina,

que aconchega e repudia, com a mesma intensidade.


Nada é mais poderoso do que sentimentos

que procuram sentimentos.

Do sublime que acalanta e consola.

Do toque que inunda e remexe os sentidos.

Da compaixão que humaniza e aproxima as criaturas.

Da paixão que alucina e desencaminha.

Do amor gratuito e improvável, como

de uma prostituta que dá de graça.  







            monstros bondosos




Contra a correnteza, o fundo iluminado dos becos escuros 

perturba as baleias. 

Claustros de cinzas submersas dispersam

o oceano de corpos.

Infusões de sol gelatinoso perseguem os cardumes

como setas incandescentes.

Grãos perpétuos incrustam as asas verdes da esperança.

A verdade persuade como redes secando ao sol,  

enquanto saboreia o paladar da discórdia.

O desencanto começa com um bom dia e monstros

bondosos.

Ter um motivo nobre para viver é um luxo para poucos.

A maioria apenas vegeta.

Onde há esperança, a razão dá de ombros.

Quem julga não se contenta com pouco.

As postulações sem nexo não temem as aparências.

Por descuido, amor e sofrimento imolam-se

em secreto sacrifício.  

Os predadores de si mesmos são meus vilões favoritos.









 

domingo, 25 de agosto de 2024



                    a hora de apaziguar o coração





Não encontrar-se na ambígua realidade,

e de súbito, ver-se

pacificado pela boca dos mortos.

Na interminável rigidez que abençoa as uniões,

a astúcia terrestre restaura as espigas da noite.

Heranças de barro acumulam velhas desditas.

O que acontece lá fora endurece o coração estigmatizado. 

A verdade sem angústia veste o nu e o invisível.

Irredutível como a vida que regenera a vida, a incessante

maresia santifica o dia.

A cura sem remédio inverte a tristeza das mentiras.

Onde não há ciladas o acaso trama a flor sobre o jazigo.

O gosto do desgosto muda-se na lama, para que a vida

se abra e reparta. 

Embora cego, o que não falta ao amor é olfato e tato.

Cada coisa fora do lugar atrasa o ritmo do remo.

Folhas irisadas pela chuva decifram a ira que condensa.

A tudo que passa, entrega-se um pouco de nós mesmos.

As vagas incessantes da memória se opõe à cegueira

fútil da felicidade. 

Sem acabar, nada recomeça.

A hora de apaziguar o coração é sempre.



sábado, 24 de agosto de 2024



                                o casulo da vida





Desejos nunca satisfeitos fecundam 

o fruto proibido das paixões,

arrancando do precário convívio as enclausuradas

distrações.

O ócio, o vício, o cio, se recriam, a fim de barrar 

o caos circundante das privações. 

Tantas coisas retiram-se de não ser, sem ao menos

terem sido.

Dobras do inquieto futuro escondem o incognoscível

parto das expectativas.

No qual o próprio coração repousa sob a pressão

dos interesses contrariados.

O sentir disfarçado consola e ajuda a desejar os desejos

entrelaçados.

Quem se atreve a libertar-se do casulo da vida,

e como as libélula, ter asas, voar ?





                     o que eu sei da vida




 


O que eu sei da vida ?

Nada sobre passar fome.

Não ter um teto.

Não ter uma família.

Estudo.


Nada sobre ser discriminado.

Perseguido.

Injustiçado.


O que eu sei da vida não me torna

melhor que ninguém.

Muito menos colocar nos ombros 

qualquer tipo de cruz.





                      anjo caído





Da vida verdadeira me distancio cada vez mais.

Tudo passou ligeiro demais.

Tempos de uma mundo mais manso vão ficando

inexoravelmente para trás.

Sinto a vida toda evadir-se,

como se nada mais valesse a pena.

O passado exilado num tempo sem dor, 

sem sabor.

Tempos em que os velhos morrem mais tarde,

e os jovens mais cedo.

A existência sucateada 

pervagando num beco sem saída.

Não sei se vivo ou vegeto.

O caos interior encontra e distribui significados

em ruínas antigas.

Fui mal-amado, traído.

Amargo minhas penas como um anjo caído. 



quarta-feira, 21 de agosto de 2024


                             o pacote




É fácil se iludir.

Estamos sempre imaginando coisas. 

Sonhando acordado.

Nada mais humano do que dar asas à imaginação.

Acreditar é preciso, para manter um mínimo de fé

na humanidade.

Decepção, frustração, desengano, são parte do pacote.

Não há quem não conheça o sentimento.

Não há quem não tenha sofrido por acreditar, por se iludir

com promessas, aparências.

Não há quem não tenha sido traído.

Menos mal se de uma forma de outra, compensou.

Porque o melhor ser humano que jamais existiu

foi traído com um beijo.


 


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