Sejamos sinceros : há momentos na vida de um homem
em que só mesmo recorrendo aos serviços de uma puta.
Que nada espera, nada exige, além de seu pró-labore.
de grão em grão
O novo tempo se sobrepõe ao abismo de si mesmo.
O homem transcendental consome seu próprio tumor maligno
em lascivas elocubrações.
O dolce staccato de não ver recompõe-se em escrutínios secretos.
A desordem do lugar de tudo chega aonde não há mais recomeço.
As promessas elevam-se num clamor maior que a esperança.
À reboque das imposturas, o amor cai em desuso.
A cor mortiça das prebendas pende entre a graça
e a desgraça.
Luz e treva coabitam acordos fraticidas.
O engodo é o pão nosso de cada dia.
Como se dizia antigamente, de grão em grão
a galinha enche o papo.
Os desejos se exaurem em lentas passagens.
O martírio da vida percorre o sentido das horas,
sob pálpebras de chumbo.
Sem retorno, a felicidade incria sebes novas.
A banalidade da existência deixa-se existir
à beira do colapso.
Fiel a seus próprios malfadados desígnios.
as coisas não ditas
As coisas não ditas são as que permanecem.
Ficam, assim, hibernando, maturando,
soterradas,
até que um dia afloram.
Ou não.
Morrem levando consigo seus segredos,
as coisas não ditas.
Refúgio ou hospedeira, a verdade imagética
abriga o desconhecido.
Reinventa colheitas, paisagens.
A fim de tornar mais palatável
as coisas humanas mais ordinárias.
à margem de mim
Passei a vida à margem de mim mesmo.
Desperdicei meus parcos talentos por falta de discernimento
e inteligência emocional.
Falhei como filho, marido, pai.
Cometi todos os pecados possíveis, só na matei, que eu saiba.
Meu legado se resume ao básico, não fiz nem deixo nada
para a posteridade.
Pouco ou quase nada me resta dizer.
Apenas que nada lamento - e nem poderia - nem me julgo
melhor ou pior que ninguém.
Sou o que sou.
Fui o que fui.
"Sei a verdade e sou feliz", como diz Fernando Pessoa
através de seu mestre, Caeiro.
ranhuras
Tudo se faz de lutas e esperas.
O clamor das mágoas irrompe com furor malsão.
O que fica subentendido se modifica na goela dos aleijões.
As conexões da alma dão luz as coisas ausentes, o que não falta
é munição para o assalto avant-garde.
Truques, armas, blefes : arsenal do mais fino trato
remonta à sílex afiado.
Hoje e sempre, rompe-se o lacre das carências múltiplas.
O gosto pelo chiste encarna o discurso de ódio,
enquanto o poema se deixa consumir por resmungos.
O texto sem ranhuras viola o espírito das letras,
subvertendo o canto do sabiá,
o pulo do gato,
ao que isso nos levará ?
Lampejos de remansos revolvem a fundura dos poços.
Permeiam a luz do fim do túnel, reprimem, regridem,
distorcem,
eludem cavalos de Tróia, mixórdias em banho maria,
ah, quem dera achar o perdido,
sem pecha, sem história.
Ó, pai, ó glória !
Louvado seja Esdras, a cada vitória.
monstro de onze cabeças
Habita entre nós um ente antigo e monstruoso,
que vive de devorar as próprias entranhas
com a fome insaciável dos chacais.
Onipresente, infunde medo e asco ante o seu reinado
de obscuro despotismo,
camuflado por poderes corrompidos e arbitrários.
À maneira dos tiranos, arvora-se de legislador, juiz
e carrasco, perseguindo e punindo a seu bel prazer,
sem que nada nem ninguém lhe faça frente.
Monstro de onze cabeças que, a exemplo da Hidra de Lerna,
clama por um Hércules capaz de decepá-las todas
de um só golpe.
* Inspirado no poema Uma Criatura, de Machado de Assis.
o que é bom, é bom A vida leva tudo de roldão Nada se detém, nada se retém O que vale é viver o momento Não importa o...