o porco
A um só tempo
você me deu tudo e tirou.
Me fez feliz e infeliz
em cada encontro e separação.
Entre o júbilo e o desalento
cevando o incauto coração,
como quem engorda o porco
para o abate.
um filho da puta como outro qualquer
Tudo o que somos, tudo o que fomos, cabem numa maldita
caixinha de madeira, ou numa urna em forma de vaso.
Que é onde colocam as cinzas da gente depois da cremação.
Já pensou ? Já vislumbrou essa possibilidade ?
Meio sinistro, é verdade, mas melhor, penso eu,
que apodrecer aos poucos, comido pelos vermes, até virar
um amontoado de ossos,
e por fim no pó do qual, dizem as Escrituras, todos viemos.
O fato é que a gente vale muito pouco.
Isto na melhor das hipóteses, porque a verdade
é que não valemos nada.
Nada que justifique a soberba, a empáfia, a bazófia que tanto
se vê por aí, ainda mais depois do advento
do mundinho das redes sociais.
Tudo bem que, como diz o sábio Bukowski, sempre
haverá dinheiro, bêbados e putas para contrabalançar,
Para nos fazer sentir menos escrotos.
De repente, até uma boa pessoa.
Boa o suficiente - em nossa cabeça - para julgar os outros.
Se achar melhor que os outros.
No fundo, uns pobres coitados, que se iludem a si mesmos.
Acreditando na farsa que montam.
Até levarem o tranco inesperado.
O golpe de misericórdia.
Mas quem sou eu para julgar, apontar o dedo.
Por mais sacaneado, ultrajado, traído, não posso esquecer
que fiz a mesma coisa. Sacaneei, ultrajei, traí.
Em suma, um filho da puta como outro qualquer.
Que por razões desconhecidas, a vida poupou, condescendeu,
foi generosa.
O que não impedirá que um dia não passe de um punhado
de pó
numa caixinha
ou vaso
que ninguém sabe ao certo
o lugar mais adequado
para jogar.
graciosa desdita
Atento ao firme propósito e seus nítidos contornos,
em urdiduras que revolvem o vago céu,
como máscaras em procissão,
e acordar da seara dos loucos,
despovoando o corpo cansado de epifanias.
Quando o fogo declina e alguém é persuadido que o
perdão é desnecessário,
o coração se aquieta com a ajuda do lento aprendizado.
Outros foram nós, diante da consciência de que tudo
é veneno, e na treva sem caos a memória se desfaz,
como o insondável rio de Heráclito, em cujas águas o futuro
se eleva, a procurar-se entre os numes.
Eleva, pois, tua prece, para que o mundo de breves sortes
e penas sem fim, se perca no olvido.
Para renascer na graciosa desdita de Fedro.
quando eu ainda era eu
Quando eu ainda era eu
e vagava entre os ontens e as perdidas coisas,
precocemente farto de tudo,
pranteando auroras e poentes insidiosos,
me vendo como um suicida em potencial,
por não ter as respostas certas,
por não ter feito as apostas certas,
precisei levar uma bela sacudidela do destino
para saber quem eu era. Ou melhor, quem eu não era.
Alguém que entendeu tudo errado desde o começo.
Que teve tudo e não teve nada.
Até descobrir-se capaz de conviver
com as maiores infâmias.
Enfim habilitado a sobreviver no mundo real.
a injustiça não descansa
A injustiça está por toda a parte
e não descansa.
Das pequenas às grandes coisas, ruína e maledicências
nos espreitam.
Sob o crivo dos sociopatas, boas intenções não bastam.
Ajuda, favores, só satisfazem enquanto duram.
E nunca são suficientes.
Quando mais você dá, se doa, mais exigem, mais cobram.
Os sanguessugas são insaciáveis.
Ajuda vira obrigação.
Sem direito a contrapartida.
O melhor de nós mal dá para o gasto.
E ai de você se prometer e não cumprir. Ou até mesmo
se cumprir. Ou nada prometer.
Não há do que não lhe chamarão.
Você pode ser o melhor cara do mundo
mas mesmo assim corre o risco de ser crucificado.
Porque é esta a natureza humana.
O mal é paciente e sempre leva vantagem.
É dele a palavra final.
A injustiça não descansa.
O CORAÇÃO NÃO TEM CULPA
quem terá espalhado a tola crença
de que o diligente e abnegado coração
é o responsável por algo tão errático
como o amor ?
pergunta meramente retórica, pois é claro
que tudo não passa de intriga do ardiloso cérebro,
geneticamente programado para criar vilões
para cada ocasião.
e quem melhor do que o generoso coração
para assumir
a culpa por desatinos que a própria Razão
não dá conta.
a noite eterna a noite eterna chega devagar a vida passa devagar até tudo passar e você de repente acordar sozin...