quarta-feira, 30 de abril de 2025



                    nódoa


Uma cantiga antiga perpassa o tempo.

Chega como um pássaro

que constrói seu ninho

com meticulosa precisão.


Chega com a linguagem do vento,

limpando-se do limo dos crepúsculos esquecidos.

Tão paciente como um navio solitário,

transpondo horizontes e nuvens

como se tivesse a vida presa na garganta.


Uma cantiga antiga, há muito esquecida,

vem de algum lugar carente de gestos e roteiros,

ferindo e conferindo

a própria beleza esmaecida. 

Ainda assim evocando as coisas mais ternas,

face a face

com seu disfarce de fera.


Agora que a eterna inquietação do amor

encontra o seu canto,

tudo me leva a ti.

Nos acordes dessa cantiga amiga, suja de terra,

cinza e saudade, o que passou já não conta.

A antiga mágoa hoje não passa de um simples nódoa.




terça-feira, 29 de abril de 2025


                  dois pesos e duas medidas



Mais do que os outros,

somos nós próprios que nos engamos. 

Acreditando no improvável.

No impossível.

Abusando do vitimismo.

Com traços de narcisismo.

Para tudo temos desculpas.

Os sacanas são sempre os outros.

Esquecidos de que para os outros, nós somos

os outros.


E ai de quem discordar.

Sempre com dois pesos e duas medidas.

Sem se dar conta do ridículo

de querer ser a palmatória do mundo.

Em que tudo de ruim é culpa dos outros.

Esquecidos de que para os outros,

nós somos os outros.

 



*musicado em 28/04/2025

                          num piscar de olhos




Desconfio das pessoas bem resolvidas.

Que se dizem em paz com a consciência.

Capazes de lidar com qualquer situação.

Porque ninguém é safo assim.

Podem até pensar que sim, mas a verdade

é que todos temos pontos fracos.

Coisas a esconder.

É tudo uma questão de tempo para o jogo mudar,

a vida virar de cabeça para baixo.

Num piscar de olhos, tudo vai água abaixo.

A paz, a soberba, a arrogância, vai tudo 

para o caralho.

É só a vida querer.

É só a vida cismar.

Para o jogo virar.

Num belo dia, você vai olha no espelho

e não se reconhece.

E sem máscara, sem disfarce, vai desabar.

Aproveite, portanto, enquanto pode.

E torça para que esse dia demore a chegar.

Porque vai chegar.

Num piscar de olhos...




                        aquém de coisa nenhuma



Sou um tipo vulgar de Don Juan.

De tanto me apaixonar, esqueci de como se ama.

A estória de meus amores é uma mistura

de "infelizmente" com "sinto muito."

Como todo amante que às paixões se entrega,

ganhei o direito de viver sem lógica.

Orbitando entre as zonas erógenas, 

entre coxas e ancas perdido,

ruminando o ardor como se fosse amor.


Vem de dentro e não resisto ao desejo enrolado 

às avessas,

ensolarado e taciturno,

que fala em silêncio

funde e se consome

como a ferrugem das coisas.


Quanto mais me abismo,

mais sem rota e sem rumo me vejo.

Desabitado como uma ilha perdida no oceano.

Longe e perto como um pontinho obscuro 

no mapa-múndi. 

Aquém de qualquer coisa.






domingo, 27 de abril de 2025


                    o cachimbo da paz





Já não lembro do teu rosto

O passado jaz no fundo do poço 

Enfim posso viver

e ser eu de novo

Livre e limpo

Tristeza e solidão não consomem mais

meu vigor.

Esqueci a musa da minha história

Fumei o cachimbo da paz comigo mesmo

De tudo que não fiz me declaro culpado

Espero um novo amor

como quem não tem um álibi

Já não lembro do teu rosto

Do resto lembro tim-tim por tim-tim. 




                         miragem




O olho inventa o mal

O chão cria paisagens

O vento invade os espaços

O mar abraça os sargaços

O arco-íris beija o efêmero

A fé brilha sem rosto

O espelho ignora o desejo


Eu sei que logo alguém dirá

que tudo não passa de miragem, 

e a paz uma quimera.

Que a vida é uma sequência de histórias

confusas, em que chafurdamos 

em meio ao marasmo das inconstâncias

E talvez seja a mais pura verdade


Minha canção é meu disfarce

O choro de quem sangra por dentro.

Alado, felino, maroto.

Um velho que ainda pensa

ser um garoto.



segunda-feira, 21 de abril de 2025




          meu amor não se presta 

          a desagravos




Eu poderia te pedir perdão de joelhos.

Poderia implorar, jurar, prometer 

mundos e fundos.

Poderia chorar, demonstrar arrependimento,

te cobrir de flores, fazer mil agrados.

Mas estaria mentindo, fingindo.

Porque não posso mudar quem eu sou.

Não consigo fugir à minha essência.

Nem por amor.

Nem te amando.


Porque é verdade que te amo.

Do meu jeito imperfeito.

Cheio de defeitos.

Intempestivo, volúvel.

Não existe o amor perfeito.

Muito menos eu.

Daí a necessidade de se amoldar,

de se ajustar

ao que cada um pode dar.

Fazendo das tripas, coração.

Para haver compreensão.

Lealdade.

Sem o quê, melhor nem tentar.


Te amo do jeito que sou.

Do jeito que tu és.

Mas não vou mentir e prometer

o que não posso cumprir.

Meu amor não se presta a desagravos.



* musicado em 21/04/2025




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Deve-se perdoar quem nunca pediu perdão ? Deve-se desculpar quem nunca se desculpa ? Deve-se amar quem não sabe retribuir ? Deve-se ser bom ...