domingo, 30 de abril de 2023


                                a utopia das utopias





Não quero ser feliz.

Ser feliz é muito complicado.

Requer atributos que não tenho.

Subornar a consciência.

Mentir para os outros, para si mesmo.

Viver de subterfúgios e paliativos para fugir

a realidade que agride.


Ser feliz exige condições e forças anormais.

É preciso parar de se enganar, de viver de ilusões.

Abrir mão do supérfluo para se contentar

com o que importa. 

É deixar de querer mudar as coisas que não pode mudar.

Entender que os conflitos podem ser benéficos, para

te desafiar e crescer.

Ser feliz é parar de levar tudo tão à sério 

e aprender a rir de si mesmo.

Não ser dependente do amor e do sexo, entender que não

somos esse corpo, e sim a alma que nele habita.


Ser feliz não é para qualquer um. 

Começa por parar de reclamar e saber agradecer.

Não querer controlar tudo, e deixar fluir como um rio.

É entender que a vida não dá o que você quer,

mas o que precisa para evoluir.

Ser feliz é entender que "a vida te quebra em tanta partes

quanto necessárias, para que a luz penetre em ti."

Que a vida "te humilha e te derrota de novo e de novo,

até você deixar seu ego morrer", como ensina Hellinger*.


Não preciso ser feliz.

Não essa felicidade baça e condicionada por posses 

e bens materiais.

Atrelada a relações que podam suas asas e cortam

suas raízes, impedindo que o seu melhor aflore.

Não essa felicidade artificial que se vê por aí.

Não àquilo que tem preço, mas o que tem valor.

Não o amor precificado, mas o dado.

Ser feliz é a utopia das utopias. 

Invenção do mundo mercantilista, em que se sonha

com bens e grandeza, ao invés de aprender 

a viver e servir.


Não, não quero ser feliz. 

Ser feliz é um luxo que dispenso.

Troco todos os seus apanágios por aclarar a mente

à luz dos mistérios que os dias encandeiam.

O tempo que se esvai levanta o muro da solicitude 

que me guia.

Da forma mais fácil e segura que a impostura 

de ser feliz à qualquer custo.


* Bert Hellinger, escritor e psicoterapeuta alemão de 93 anos, uma das vozes mais

brilhantes do pensamento contemporâneo. 











 
















 

sábado, 29 de abril de 2023




                        meu guapo inesquecível 



A quién puedo preguntar qué vine a hacer

en este mundo ? (Pablo Neruda)


Acordei sobressaltado, com o telefone tocando. Às 4 da matina, boa coisa não pode ser.

- Alô !

- E aí, gringo. Tudo bem contigo ?

- Como ? Quem tá falando ?

- Não tá reconhecendo minha voz ? 

- Não estou não, isso lá é hora de brincar de adivinhação ? Quem tá falando ?

- É o Vado, pô !

- Vado ? Mas que Vado ? Não conheço nenhum Vado.

- Que isso, gringo. Tá certo que faz um tempão que a gente não se fala, mas vai dizer que não lembra mais do seu guapo do Clube da Ponta ? Do Saldanha ?

- Que palhaçada é essa, tá louco, cara ? Você já morreu, quer dizer, o

Vado que conheci morreu tem uns cinco anos. Fui no enterro dele.

- Opa ! Foi não, não vi você lá, gringo.

- Tá certo, eu só soube que ele tinha morrido semanas depois. Mas vamos acabar com essa brincadeira sem graça, qual a sua, hein ?

- Caramba, tu ainda tá duvidando ? Então pergunta aí qualquer coisa

que a gente passou, dos treinos na praia, das brincadeiras no sítio do

Nestor.

- Meu Deus, não acredito nisso... Mas tá bom, já perdi o sono mesmo. Deixa ver... Ah, diz aí quem foi o cara que te fez quatro gols de falta num jogo no Saldanha ? Quem foi ?

- Pô, sacanagem você lembrar logo disso. Tantas defesas memoráveis e você me faz uma pergunta dessas. Foi o Mario Papeta. Nunca vi ninguém chutar daquele jeito. E olha que não falhei em nenhum deles...

- ...

- Alô, gringo, ainda tá aí ? Alô !

- Eu, porra...

- Acredita agora ?

- Como pode isso ? Só pode ser alguma pegadinha.

- Que pegadinha, gringo. E quem mais te chamava assim ? Eu sei que é difícil acreditar, mas sou eu mesmo. Tu sabe que eu sempre gostei muito de ti, e como surgiu uma brecha aqui, resolvi aproveitar. Tô te vendo meio desanimado, desiludido com a vida, aí pensei, preciso dar uma força para meu camarada.

- Isso é loucura, não pode estar acontecendo. Mas o que está errado comigo ?

- Vejo você muito isolado, descrente de tudo, até deixou de jogar bola. Tem que aproveitar a vida, irmão, dar valor as coisas, enquanto é tempo. Veja o que aconteceu comigo, com essa doença que apareceu de repente, com tanta coisa ainda pela frente.

- Tem razão, mas tem horas que a gente baqueia, sabe como é, sacanagens...

- Ah, isso sempre tem. Não tem escapatória, o ser humano é complicado. A vida é difícil. Mas não pode levar a ferro e fogo. Relaxa, faz a tua parte que as coisas se ajeitam.

- Se fosse simples assim...

- Verdade, não é fácil manter a cabeça no lugar, segurar a barra. Mas procura ver o lado bom, você é um cara do bem, por isso fiz questão de falar contigo. Pra você saber que no fim tudo acabará bem.

- O fim, como ? Por acaso o meu fim está próximo ?

- KKKKK... Fica tranquilo, gringo, tua hora ainda não chegou. Falando nisso, eu tô na minha, preciso desligar antes que deem por minha falta. Além disso, tá na hora da peladinha...

- Peladinha ? Aí tem bola também ? A essa hora da madrugada ?

- Aqui não tem noite, é sempre dia de sol, céu azul...

- Que beleza. Mas me diz aí, vai jogar de quê ?

- Goleiro, cara, goleiro. Eles não me deixam jogar na linha.

- Ahn...

- Eles sabem que eu desiquilibro.

Aí eu tive certeza, com essa humildade toda só podia ser o meu saudoso amigo Oswaldo Garcia Filho, o Vado, que se foi tão prematuramente, e que inspirou essa pequena e singela homenagem.


* Escrevi essa crônica, suprimido alguns trechos sobre futebol, para a coluna Jogo Aberto, do Jornal A Tribuna, da qual fui colaborador entre 1980 e 1985.  





terça-feira, 25 de abril de 2023


                       o que eu queria



Queria conhecer alguém que me mostrasse 

as coisas boas que não consigo ver.


Queria ver o amanhecer com os olhos inocentes de antigamente.


Queria colher as flores da minha sepultura.


Queria conhecer a linguagem da luz, ser surpreendido

por um milagre. Um único e indiscutível milagre.


Queria não sentir falta do que me faz falta.


Queria redescobrir a tessitura das amizades sinceras. 


Queria abraçar meu pai mais uma vez. Mesmo que em sonho.


Queria ter amado mais e melhor.


Queria ter sido melhor do que fui, ou sou, mas ainda

estou batalhando para isso.


Queria controlar o vaivém nocivo dos impulsos.


Queria ver meu país livre da corrupção e da tirania.


Queria poder corresponder as expectativas

de quem ainda gosta e acredita em mim.


Queria que meu coração arbitrário encontrasse pousada, 

criasse juízo.


Queria não me arrepender de ter apostado todas minhas fichas

em coisas que acabaram não dando certo : o futebol,

o jornalismo, minha finada ex-amada.


Queria que o que escrevo tenha algum mérito, que permaneça

depois que eu me for.


Queria sentir o aroma feliz de uma torta de maçã, numa

tarde chuvosa.


Queria contemplar-me com os olhos de quem se perdoou.


Queria me penitenciar com os amigos dos quais me afastei,

sem qualquer razão plausível.


Queria não ser o síndico da minha massa falida (assim como

Paulo Mendes Campos).


Queria inventar um jeito de ser feliz, sem perder o senso

da realidade.


Queria pensar mais com a razão do que com  o coração. 


Queria perdoar, do fundo do coração, a traição que quase

me destruiu.


Queria que espalhassem minhas cinzas num campo de girassóis. 


Queria não me arrepender de amar, de ter amado.


Queria não ser um estorvo, não ser motivo de pena ou chacota,

o pesadelo de todo velho.


Queria que a mentira e a impostura fossem banidas na Criação. 


Queria acreditar em você, que diz que me ama.












 






 



 




 





  

 


                       decreto divino



Rebanhos. Seremos, de fato, um grande rebanho ?

Rebanhos de gado, rebanhos de asnos, conforme a tosca

retórica da militância política nativa.

Todos irremediavelmente tangidos pela mídia nefasta,

por governantes inescrupulosos, mentores de araque.


Divergentes caminhos de rebanhos seculares nos precedem.

Rebanhos que guerrearam, edificaram impérios,

moldaram países, fazem o trabalho sujo.

Somos filhos de povos escravizados,

de negros arrancados de suas tribos seculares,

de populações manipuladas,

indígenas catequizados na marra.

Rebanhos que se formam e se dissolvem sob o tacão

dos poderosos, 

de conquistadores impiedosos,

pela cruz de Cristo, pela espada do Alcorão,

por bem ou por mal.


Porquanto os rebanhos pastam,

amam,  acoimados em sua inútil rebeldia,

isentos de culpa porém punidos, 

imolados.

Por decreto divino.










                             ora, direis



A saga humana escalavra as entranhas do mundo.

Rompe a casca dura.

Perpassa a agreste inocência.

Tece secretas florescências.

De desditas se alimenta.

Compadecendo-se em miserável ternura.


À pantomina dos dramas evoca palavras de olvido.

Aprende-se a duvidar de tudo

para que o fardo alheio não nos pese.

Dores de toda espécie nos ladeiam.

As injustiças, as privações, os assassinatos

não nos dizem respeito.

Até chegar o nosso dia de padecer à revelia.

Imerecidamente, ora, direis. 

Mas quem se importa ?




  


                           amor ordinário ( à moda Bukowski)



O amor ordinário é como uma escova

de dentes gasta.

É como comprar um carro usado

com o motor fundido.

É comprar um bilhete de loteria

que já correu.

É pegar o ônibus errado e não ter

grana para voltar.

É cagar na cueca pensando ser um peido.


O amor ordinário é como um vício.

Você sabe que faz mal

mas não consegue largar.

É uma piada pior que a vida

mas não há nada melhor.

Não ter certeza de nada, nada esperar

a não ser viver o momento.

Sem falsas ilusões, portanto. 

O que pode ser melhor ?


Amor ordinário, sem futuro, atrelado

ao passado que sempre volta,

apegar-se, nem pensar.

Este é o pacto.

Nada de promessas, cobranças, compromissos.

Coisa de segunda mão, sem garantia.


O que tenho a oferecer é insuficiente.

O que tens a dar, agarro com unhas e dentes.

É pouco, mas não posso querer mais.

O amor ordinário não se submete,

não aceita imposições.

É o que é.

Intangível, postiço.

De tão ordinário, sujeito a acabar

com um simples bloqueio no watts ap.



segunda-feira, 24 de abril de 2023



                        em causa própria






Ralei muito para chegar onde estou,

nos arrabaldes de mim mesmo.

Rodei, rodopiei, cai e levantei

nem sei quantas vezes.

Me jacto em dizer : nada nem ninguém

me derrubou.

Nem as falsetas da vida, nem a bola nas costas

da mulher amada.

Penei, é claro, cheguei às vias do desespero,

mas uma força interior inexplicável sempre

esteve comigo.

Uma força interior semelhante a de Leon Tolstói, 

que fugiu de casa aos 80 anos

para viver com uma rapariga de 22 ( mentira, só estou

legislando em causa própria, como manda 

nossa infame judiciário).










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