quarta-feira, 16 de agosto de 2023




                  o rosto no espelho





Um homem só em sua casa, 

assombrado pelo delicado tempo que tudo enovela,

encara o rosto de um suicida no espelho.

Saturado de uma vida que não entende.

Perdido em paraísos artificiais.

Faz-se de forte, ignorando a besta consoladora

dos aflitos.

Rastros de passos erradios circundam o caminho

sem volta.

A solidão é o acalanto que mascara as mágoas

possuídas por dádivas descontentes.

O agora é onde o eco inverte a fala, e o rebojo 

das coisas insensatas ignora o extinto.

Nos hemisférios da alma, a desagregação da vontade

constrói se desmanchando.

Continuar, emparedado pelo tempo, adquire ares de façanha.

Mas o mundo devassado e imperfeito assim o exige.

Que o rosto no espelho esqueça quem era.









 

terça-feira, 15 de agosto de 2023




                        o sopro da vida




 


O sopro da vida é leve

                           suave

                                        breve

Dura e perdura impregnado de memória.

Nada se retém.

Nada se salva na matéria finita que depõe 

guerreiros e armas.

Somos o rio de Heráclito.

Somos o pó incalculável que renasce feito Fênix.

Somos as migrações que forjaram os povos e mapas

da saga humana.

Somos os exércitos que escreveram e reescreveram 

a História.

Somos os templários que perpetuaram o nome de Cristo

com suas atrozes Cruzadas.

Somos os povos escravizados que sofrem e calam.

Somos os impérios que se apagaram como um relógio de sol.

Somos aqueles que, misteriosamente, sobreviveram 

à elevação das águas do dilúvio.

Somos aqueles que viram a morte de perto nas pestes

e guerras exterminadoras.

Somos aqueles que decretam a morte dos infiéis, sob as crenças

mais sanguinárias.

Somos aqueles que estiveram na Odisseia de Troia, 

imortalizados em Termópilas.

Somos aqueles que construíram as enigmáticas pirâmides.

Somos aqueles que a história não fala.

Somos aqueles que inspiraram Balzac e Kafka.

Somos aqueles que saudaram Hitler.

Somos aqueles que idolatram ídolos de pés de barro. 

Somos aqueles que trilharam os caminhos da penitência,

como ensina TS Eliot.

Somos aqueles que recordam os dias felizes.

Somos aqueles que caminham lentamente para o cadafalso,

pelos mais diversos crimes. Ou nenhum.

Somos aqueles que brincam com seus filhos, na volta

do trabalho.

Somos aqueles que ignoram os toscos labirintos da razão. 

Somos aqueles que suportam com estoicismo 

as privações e desgraças.

Somos aqueles que colecionam madrigais de ternura e

dilemas pacíficos.

O sopro da vida é eterno.



 

domingo, 13 de agosto de 2023



                      auréolas complacentes





Quando, um dia, eu não passar 

de uma vaga lembrança,

não mais que o verme que fustiga o defunto,

certamente parecerei melhor do que sou.

Serei melhor do que jamais fui.

Antepassado do meu mundo arcano, marcado

por auréolas complacentes, estarei, enfim, 

liberto das formas que a memória 

furta do meticuloso tempo. 

Serei amado como nunca fui.

Ninguém lembrará dos porões infectos, das coisas sórdidas.

Quando, um dia, eu me for, certamente 

serei louvado até pelo que não fiz.

Serei grande como nunca fui.



quinta-feira, 10 de agosto de 2023


                    as coisas nunca são

               como deveriam 





 

Há dias bons e dias ruins.

A maioria, tão somente suportáveis.

Alguns até valem a pena, malgrado o voo rasante 

de tudo que termina.

Sob o fogo cruzado punitivo da vida, consome-se o tempo

que martela a permissiva consciência.

Dormindo quase sempre na mesma cama.

Eludindo o cerco de arame farpado das coisas estimadas.

Afim de aceitar-se nos lugares que nos resguardam

e nos definem. 

Cohabitando cidades, ofícios, conflitos.

Atados a dias sem alvores nem renasceres. 

Repletos de engodos e demoras.


Tudo se evola na genealogia das tramas e emulações.

As coisas nunca são como deveriam.

As histórias se enredam como flores no campo, 

passando com pressa e sem culpa.

Dia e noite, a mesma agonia se refaz enquanto

a vida passa 

e "o louco que persiste em sua loucura

acorda são" (Blake).










 








sexta-feira, 4 de agosto de 2023

 


                até onde esse amor aguenta ?


 


O que nos une, nos afasta

O amor que não se basta


Não faz nada de graça

Vive de pirraça


Ambos pavio curto

Volta e meia eu surto


Você não fica atrás

Quando baixa o Satanás


É um tal de brigar e fazer as pazes

De dialogar somos incapazes


Eu cheio de razões

Você cheia de dedos


Eu marrento

Você desbocada


Ambos chegados num drama

Só nos entendemos na cama


Até onde esse amor aguenta ?





quinta-feira, 3 de agosto de 2023




                                 solitude




Nas asas do céu estrelado

Voa um girassol alado

Cuspindo pélagos ensandecidos 

Onde jaz o diverso mundo estiolado.


O caos dança em círculos

Sem remordimentos e utopias

Marcos da terra mastigam 

O silêncio das suaves cosmogonias.


As coisas se cumprem manchando a Criação

Poços de angústias desvendam os himeneus

Das belezas circunscritas e maltratadas

Que violam a precária aliança com Deus.


Minha alma vagueia serena e fria 

Na solitude dos segredos guardados

Viajante tranquila de elegias e cansaços

Em busca da verdadeira sabedoria.





  

quarta-feira, 2 de agosto de 2023



                    antes, durante e depois





Renasço a cada dia.

A vida esvaída de sentido nem por isso

é menos vida.

O pão nosso de cada dia provê a rude paciência.

As manhãs me arrastam como um animal

fiel a seu fado.

Ando entre o que finda a cada passo.

Crises de dicotomia roem o pensamento.

O silêncio do grito ensurdece.

Tão lúcido como se fosse de encontro ao inaudito.

Sem que nada se explique ou desenrosque.


Meu palco se desfaz no limite da ribalta.

A palavra ambígua desacredita o belo e o dramático.

Na absoluta incoerência dos desejos, a posse, o enlevo 

e o cansaço aviltam o amor.

Antes, durante e depois.






 








 

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