sábado, 14 de outubro de 2023


                                  trincheiras


                                          "os virtuosos hão de sempre ser louvados"

                                                         (Mário de Andrade)



A vida é bela porquanto monstruosa e magnífica.

Feito espigas de colheitas triunfantes e atrozes.

A revelia das futilidades merencórias.

Convenientemente conjuradas por demônios imaculados.

À imagem e semelhança do Criador.


A vida é bela em meio ao ódio sem perdão.

A vida é bela entre insultos e agressões.

A vida é bela para assassinos e ladrões.

Repleta de disparidades crônicas e adiposidades morais.

O clamor surdo dos martírios ecoa per omnia saecula 

saeculorum.

A mansa noite fecha as pálpebras dos imolados sem razão.

Para que seu luto impuro não perturbe o sono dos justos.


Como é bonita a vida !

A vida farta, livre de dores e aflições comezinhas.

Embalada pelo gozo dos prazeres mundanos.

A vida que renasce para que sejamos mais fortes.

Transfigurada além das profecias.

Eterno é o homem e sua ambição fumarenta.

Alheio a desgraça alheia.

Das gentes sem nome, sem lar, sem pátria.

De quem é a culpa ?

A vida desgraçada dos deserdados, o diabo que os carregue !

Nada muda, nada mudou desde que o mundo é mundo.

A vida é boa, conquanto desigual e desregrada.

O puro e o heroico permeiam a inquietação fulgurante

da felicidade.

Nas armadilhas do conforto e nas lassidões do espírito,

Madalenas de fino trato fazem as honras da casa.

Miséria pari vassalos do hediondo.

Fraternidade escassa cava trincheiras em nossos peitos.

Com o risco de despertar tudo o que de melhor

e mais raro

hiberna dentro de nós.













quinta-feira, 12 de outubro de 2023



                                  o outro que não fui





O outro que não fui 

é o filho que toda mãe queria ter.

O filho pródigo que não desonrou a casa paterna.

Que fez de tudo para destruir-se sem conseguir.

Expert na arte de transformar nada em tudo.

Constante em recomeços que curam.

A exuberância do ínfimo o fez gostar do que é.

Tornou-se outro quando a luminosa adolescência morreu.

Vivendo como se o tempo não passasse.

O desespero de não ter uma casa já não o afeta.

A sabedoria que lhe faltou ainda palpita, hostil, 

entre vultos e defuntos.

A fábula perfeita envenenou a carne insatisfeita.

Do outro que não fui. 




  




domingo, 8 de outubro de 2023



                       o pecado original






Invento os sintomas da doença

mais antiga.

Às vezes talvez tampouco entendo

algo que não está morto.

A luz cega 

o olho vivo e poderoso

retribuindo a simpatia dos deuses mais cruéis.


Enquanto a flor do cardo perde seu ardor

novos arrimos circundam

as coisas sem história.

A vaga memória culpa e perdoa.

A melhor parte de nós sempre fica para trás.

Verdades e mentiras se evitam mutuamente.

Quando se tocam, finalizam seu papel de engodo 

e troça.


Deixemo-nos respirar ares duros e silenciosos.

Corpos cansados não refletem dor nem alegria.

Tudo aquilo que repousa na manhã fresca

retorna ao ventre asqueroso.

As dobras do tempo barbarizam os filhos do severo nume. 

A partir do pecado original de Santo Agostinho,

tudo o que passou não existe.

Nem o mundo nem o universo se explicam.







                                paranoias





Não se culpe quando algo acaba.

Não antes de conhecer à fundo os fatos.

Tenha em mente que as coisas não dependem

só de você.

Esteja certo de que ninguém dá a mínima

para suas razões,

nem quer saber da sua dor.

O ser humano é egoísta por natureza

e o amor não é garantia de nada.

As coisas dificilmente acontecem como a gente

espera,

as pessoas dificilmente são como a gente pensa.

Imaturidade, ansiedade, males que comprometem

qualquer relação.

Ninguém aguenta viver em meio a conflitos e incertezas,

frutos da instabilidade emocional.

Não se acostume com o que te machuca.

Por mais que você ame, não é justo permanecer 

em uma relação abusiva 

só por achar que um dia vai melhorar.

Porque as pessoas não agem como agiríamos.

Expectativas só alimentam paranoias.

Não se deixe enganar pelo coração.

Carências criam afetos imaginários.

Na medida do possível, seja racional.

Saiba dizer não se algo está te fazendo mal.

E por mais que doa, nunca se arrependa

de não aceitar menos do que você merece.




 

sexta-feira, 6 de outubro de 2023



                  o começo e o fim





Já não me vejo como antes.

Envelheci à sombra de mim mesmo.

Querendo ser o que nunca soube ser.

A falta de aptidão para o fracasso nunca me abandonou.

Tudo que fiz de errado deu certo.

Me arrastando pelas sarjetas 

meu verdadeiro eu encontrei. 

A banalidade da existência não sabe 

se eu nasci ou morri.

Em mim se imbrica o começo e o fim.

No pedestal do tempo jaz o jardim sepulcral

de Mallarmé.








domingo, 1 de outubro de 2023



                       o frágil equilíbrio das coisas





O frágil equilíbrio das coisas é o grande milagre

que se perpetua.

Calmaria e loucura convivem em perfeita harmonia.

Não obstante ser mais fácil odiar do que amar,

a vida só vale a pena enquanto o amor perdura.

Digo-o, hoje, mesmo tendo todos os motivos

do mundo para maldizê-lo.

Mas eis que o tempo reestabelece o frágil equilíbrio das coisas. 

Porque nessa vida o efêmero deflora os lirismos ingênuos,

e aniquila os sentimentos,

até aprendermos a viver sem depender deles.

Calmaria e loucura, tudo a seu devido tempo.

A vida é sábia. Nós é que complicamos. 

Estragamos tudo. 

Para só então aprender.

  




 



  


 




                       entre dois tempos




Há um muro invisível entre nós.

O nosso jeito de pensar têm muitas linguagens.

Tão perto e tão longe dos enredos sonhados.

De tudo há de surgir um entendimento duro.

Ainda que inventando o que não existe.

O afeto vulgar e triste emparedado entre dois tempos.

Construindo e desmanchando, continuamos 

porque não podemos senão continuar.

Porque não há mais para onde ir.

Nascemos um para o outro.




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