quinta-feira, 7 de setembro de 2017



                                   FIO DE AÇO 



Penso que o Brasil está tão ferrado que nem os generais se animam a botar a casa em ordem. Talvez porque intervenções militares estejam fora de moda; talvez por não terem a mesma têmpera dos generais que botaram ordem na casa em 1964; mas, muito provavelmente, por estarem entre as tais categorias que não tem do que se queixar, em termos de remuneração e regalias.

Sem poder contar com os milicos, o único instrumento que resta ao país para enfrentar o regime de ilicitudes entronizado nos 12 anos de governança petista é o Poder Judiciário, responsável pelo cumprimento das leis e da preservação do estado de Direito.
Não há outro caminho. Todas as demais alternativas inerentes a práxis democrática já se mostraram ineficientes, inócuas, incapazes de reverter o quatro de putrefação político-governamental vigente. Entre as quais, o virtual conto do vigário de um modelo eleitoral viciado, manipulado e, que ninguém duvide, adulterado, a julgar pelos inúmeros indícios já veiculados sobre possíveis fraudes em nosso sistema eletrônico de votação.

Desgraçadamente, porém, tampouco o judiciário brasileiro de um modo geral tem se mostrado à altura de seu papel de guardião da legalidade e moralidade. Muito pelo contrário. O que não tem faltado, em tribunais de todas as comarcas e instâncias, são exemplos de arbitrariedade, arrogância, prepotência e bizarrices jurídicas escandalosas, sem falar da politização explícita de manjadas figuras do STF.

O que esperar de uma Suprema Corte em que pontificam juízes useiros e vezeiros em livrar a cara dos meliantes mais notórios ? Como costumam fazer os sacripantas Marco Aurélio Melo e Gilmar Mendes, que além da peculiar empáfia, mantém estreitas relações com a mais fina flor da bandidagem política. A exemplo de outros não menos manjados colegas de toga, como Dias Tófoli, Ricardo Lewandowski e o próprio Edson Fachin, de sabidas ligações com o petismo.

Já à ala moderada, como a própria ministra Cármen Lúcia, presidente da casa, falta coragem e liderança para tomar frente e agilizar as ações em curso. Não só da Laja-Jato como em relação as inúmeras outras denúncias que tramitam em banho maria contra políticos implicados nos esquemas de corrupção. As dezenas de ações ajuizadas e postergadas contra Renan Calheiros e Romero Jucá pairam como um escárnio ao povo e depõe contra a própria mambembe justiça do país.

Sobra, neste salseiro, as atuações isoladas de alguns juízes honrados como Sérgio Moro e Marcelo Bretas, que juntamente com o MPF, tem servido de inspiração para outros da mesma estirpe e mantido um mínimo de esperança num futuro melhor para o país. Um fio de esperança mas um fio de aço, pois respaldado nos anseios de uma sociedade cansada de espoliação, de ver o mal triunfar.

domingo, 3 de setembro de 2017


                Besta

Eu sou uma besta
Eu sou uma besta
Eu sou uma besta
Eu sou uma besta
Eu sou uma besta
Eu sou uma besta
Eu sou uma besta
Eu sou uma besta
Eu sou uma besta
Eu sou uma besta
Eu
Sou
Uma
Besta
Eu
     Sou
           Uma
                  Besta
                  Eu
            Sou
      Uma
Besta

sábado, 2 de setembro de 2017


                CRESCEU, PERDEU



O homem não é o que aparenta.
Só uma criança é o que aparenta.
O homem é um fingidor nato, dissimulado e ingrato.
É o avesso de si mesmo, lobo em pele de cordeiro.
Prisioneiro de idiossincrasias insuspeitas e inconfessáveis.
Aquele sujeito, quem diria, aparentemente tão gente boa,
e no entanto, um energúmeno, um vigarista, um facínora...

Quem, afinal, o homem ?
O que melhor o define ?
Ao mesmo tempo altruísta e embusteiro, 
vítima e algoz.
Lúdico e lúbrico.
Mecenas e trapaceiro.
Ou nenhuma coisa nem outra.
Na superfície uma coisa,
no íntimo, libertino, pedófilo, psicopata...
Ser tantas coisas e nenhuma,
viver escondendo a verdadeira face,
és um homem ou um camaleão ? 

E para quê ? Por que ? 
Para não ser julgado, não ser crucificado
num mundo feito de convenções.
De regras, mordaças, camisas de força.
O mundo é um teatro, em que todos fingem 
ser o que não são.
Querem ser o que não são.
Fazem qualquer coisa para chamar a atenção.
Capricham na indumentária, mutilam o corpo.
Nenhum homem é o que parece ser.
Ninguém tem o direito de julgar ninguém.
Só a criança é o que é.
Até ser contagiada pela maldade
inoculada pelo bicho-homem...
Porque, cresceu, virou adulto, perdeu...







  

sexta-feira, 1 de setembro de 2017


                                   VIDA VADIA





Vai, vida vadia, nada mais espero de ti 
senão as falsetas e ciladas de sempre.
De sonhos e esperanças abjurei.
A armadura e a espada empenhei. 
Lutar com palavras é o que me resta. 
É o que me basta. 
Ainda que em vão. 
Escrevo versos, mas a complexidade do mundo
não cabe nessas estrofes canhestras.
Me faltam palavras para expressar 
o que me atormenta a alma.
A razão desse permanente desassossego. 

Meu pensar é como um navio que passa
ao largo, rumando sabe-se lá para onde.
Levando à bordo sabe-se lá o quê.
Mistérios ? Verdades ? O que importa ?
A vida segue seu curso inexoravelmente,
até sumir no nada.    
Entorpecida pela cota diária de barbáries e sacanagens.







sábado, 26 de agosto de 2017



 
                      concordia discors


                               

Se aventurar por mares nunca dantes navegados,
neles naufragar e se reinventar 
a cada tempestade.

Desbravar caminhos desconhecidos e traiçoeiros 
e ao cabo neles, refazer e repensar 
os malogros da jornada.

Alçar voos por horizontes plausíveis, onde sonho 
e realidade 
enfim se harmonizem.

Mergulhar fundo da alma peregrina, 
e converter-se a beleza obliterada da vida. 

Garimpar a verdade na pedra bruta,
ainda que as mãos sangrem, o chão se abra,
e a desilusão sobrevenha.

Desbravar a morte seca, cavalgando montes e
rios, até galgar o Todo 
em que tudo se completa.


Encarar todo dia a mesma jornada, comer o 
mesmo pó, o pão que o diabo amassou, e ainda
assim não perder a fé.

Pecar sem culpa, sofrer em vão,
quem é o mais infame ?
O pecador ou quem atira a primeira pedra?

Pior é ver a vida passar em cancerosas cosmogonias.
Ver o mundo soçobrar, a miséria recorrente
dos grotões do terceiro mundo, 
enquanto uma minoria privilegiada 
afronta o mundo com sua riqueza.

Desumana e desigual, assim caminha a humanidade.
A insanidade grassa, o juízo final começa nos lindes
da eucaristia.
Posto que a fé que remove montanhas é a mesma
que revolve as entranhas.
Mundo louco em que em nome de Jesus Cristo ou Maomé,
as maiores atrocidades se praticam.

Em que justiça não há, igualdade muito menos.
Em que a esperteza vale mais que o trabalho.
Em que as leis protegem quem rouba e trapaceia.
A espera pelo tempo em que as profecias se cumpram. 













 





  











quarta-feira, 16 de agosto de 2017



                    
                      COM O DIABO NO CORPO 




Vendo os rumos cabalísticos que marcam indelevelmente a carreira de Neymar, inevitável não pensar sobre o que o torna tão diferenciado e especial. Se é fruto da fórmula tradicional - a somatória de trabalho, dedicação, biotipo e uma boa dose de genialidade, ou de algum tipo de predestinação ou algo ainda mais esotérico. Aliás, pela desenvoltura que mostrou logo de cara no clube francês, como se estivesse jogando uma pelada qualquer, a hipótese de tratar-se de um extraterrestre também não pode ser descartada.   

A mim, particularmente, o que mais assombra não é a fama, a idolatria e a veneração quase sacrílega que desperta. Tampouco as cifras estratosféricas que envolveram sua transferência do Barcelona para o PSG, de resto consequências naturais dessa fulgurante trajetória e sua unção como estrela de primeira grandeza no universo futebolístico e das celebridades. 
  
O que mais me chama a atenção e intriga, por fugir à regra e ao lugar comum, é exatamente a fluidez e a naturalidade com que as coisas que vão acontecendo e sedimento sua edílica carreira. É o corpo e a cabeça aparentemente blindados para superar os desafios a que se propõe e se põe na linha de frente. Como se ele ou seu controvertido e onipresente pai, tutor e mentor, tivessem algum tipo de pacto semelhante ao do doutor Fausto, da soberba obra de Goethe, que vendeu a alma ao diabo para obter tudo o que sonhava em vida. Sabe como é, no creo en brujas, pero que las hay, las hay...

De certa forma, Neymar tinha tudo para quebrar a cara precocemente, como tantas e tantas promessas engolfadas pelas armadilhas da ascensão súbita, dinheiro à rodo, mordomias, baladas, etc,etc. Afinal, de família paupérrima, bastou despontar nas categorias de base do Santos para cair nas garras dos abutres que proliferam nos bastidores do futebol, oportunistas transvestidos de empresários que arrancam procurações extorsivas em troca de merrecas à título de ajuda de custo. 

Estratégia invariavelmente infalível, e no caso do garoto Neymar, com o agravante de a própria diretoria santista, na figura de seu presidente e mecenas Marcelo Teixeira, ter praticamente doado 40% de seus direitos federativos ao manjado DIS, grupo que se esmerou em amealhar verdadeiras fortunas às custas do miserê que campeia no futebol brasileiro, agravado pela infame Lei Pelé. Das duas, uma : ou Teixeira obtusamente não botava fé na joia que despontava, ou cometeu um crime de lesa-clube imperdoável e pra lá de suspeito.

O fato é que não demorou para que um cenário preocupante se desenhasse para a diretoria que o sucedeu : a perspectiva de o clube ficar na mão em sua inevitável saída. Ainda mais com a entrada em cena de um personagem chave que não só se contrapôs, como subverteu a ordem vigente, em que o clube e agentes tem a palavra final. Um interlocutor e representante ainda mais esperto e - como logo se veria - incomparavelmente mais ladino que a tradicional cafetinagem do ramo  : Neymar pai. 
Sim, pois tão rápida quanto a ascensão do filho, lançado no time principal aos 16 anos, foi o seu impressionante aprendizado dos macetes e jogadas inerentes ao promíscuo mundo futebolístico. 
Cujo cartão de visitas foi a farsesca e fraudulenta negociação que levou Neymar ao Barcelona, acertada às vésperas da decisão do título mundial em Tóquio, em que o time catalão enfiou 4 a 0 no Peixe. Com 40 milhões de euros no banco adiantados na transação, não estranha que Neymar passeasse em campo, obviamente sugestionado e deslumbrado com seus novos e futuros companheiros. Mancha que jamais será perdoada e apagada em seu currículo no clube que lhe abriu as portas para a fama e fortuna.

Ficava claro então o quanto se havia subestimado a astúcia do pai que fingia ser bonzinho e correto com o Santos e a DIS, ao mesmo tempo em que articulava uma controvertida rasteira em ambos, que ainda hoje é discutido na justiça. Tanto aqui como na Espanha, onde o Barça já foi punido com multa milionária e pena de prisão para o então presidente, o notório Sandro Rosell, ex-representante da Nike e comparsa do ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira, nas mutretas fartamente divulgadas pela mídia. Pendenga que por aqui, ainda promete se alongar em meio aos meandros de nossa compassiva justiça.

De qualquer forma, nada que impedisse a carreira do craque de seguir de vento em popa. E ponha vento nisso, graças a sua imediata adaptação no estelar elenco blue-grana e a consagração do trio MSN como artífice da conquista da Champions em 2015. Prestígio que não foi arranhado com a campanha apagada na temporada seguinte, em que o grande rival Real Madrid e a estrela de Cristiano Ronaldo brilharam intensamente, ainda que o grande feito das últimas décadas coubesse a Neymar e companhia, com a incrível goleada de 6 a 1 sobre o PSG.

Na qual teve atuação tão decisiva que fez com que os xeques catarianos, donos do humilhado clube francês, desfechassem uma verdadeira operação de guerra para tirá-lo do Barça, com contatos em várias frentes no sentido de quebrar resistências que pareciam intransponíveis. Aparentemente, mais por parte do clube catalão, que esnobou até o último momento um checão de 220 milhões de euros que quase teve que ser depositado em juízo, já que Neymar e seu estafe, preferiam esconder que já vinham negociavam com emissários franceses há semanas. 
Daí, por sinal, o desgaste que ele acabou sofrendo junto ao clube e sua torcida, inconformados pelo que ganhou contornos de uma verdadeira traição.


Transação que acabou se consumando, após semanas de marchas e contramarchas, envolvendo cifras que não só inflacionaram absurdamente o mercado futebolístico, como colocaram na berlinda as normas do fair play financeiro da FIFA, que estabelece que um clube não pode comprometer mais do que 1/3 de seu faturamento bruto em contratações,. Normas nas quais o Barcelona confiava para mante-lo, ao prorrogar seu contrato até 2021 no final do ano passado, com uma multa de 220 milhões de euros que os catalães acreditavam ser impagável para qualquer clube.
Qualquer clube menos para o biliardário fundo controlador do PSG, para quem a montanha de dinheiro paga por Neymar não tardará a se reverter em lucro, conforme projeções de retorno financeiro baseadas na própria apoteótica recepção com que foi recebido em Paris, com direito a Torre Eiffel enfeitada de verde e amarelo e tudo mais. Recepção e expectativa que longe de intimidar, inibir ou assustar, ele tratou de justificar plenamente logo na estréia, ao assumir sem qualquer embaraço o protagonismo num time recheado de nomes famosos, que ao menos a princípio parece estar pronto a gravitar em torno do craque brasileiro. Até quando, só Deus sabe. Ou até onde o fantasioso acordo com o chifrudo permitir.

Elocubrações à parte, louve-se, isto sim, a extensa lista de atributos que alicerçaram e alicerçam a extraordinária carreira do craque nascido e criado num dos bairros mais carentes de Praia Grande. Atributos como força de vontade, disciplina e, sobretudo, obediência cega e incondicional às orientações do pai, que acumula as funções de administrador sagaz e conselheiro implacável com igual eficiência. 
Daí a explicação racional para a evolução gradual e consistente que vem mostrando ao longo da carreira. E que se mantém incólume a par do seu sabido e assumido gosto por noitadas e festas em que costuma ser convidado de honra e o troféu mais cobiçado pela mulherada. Curtições em que, ao contrário da grande maioria, bebedeiras e drogas são veementemente proibidas, tanto por convicção como por imposição do severo pai.

Obediência que ele matreiramente diz ter contrariado apenas duas vezes - a última delas, ao optar pela transferência para o PSG, seduzido por um nababesco projeto que tem na conquista da Champions Liegue e no título de melhor do mundo, assumidas obsessões para ambos.  
O que no fim  das contas não é o primeiro nem o último grande desafio que tem pela frente, em sua trajetória pontilhada de conquistas e raras decepções. Nada que a essa altura pareça demasiado para o magrelo abusado e cheio de personalidade, que desde o início de carreira entremeava seu enorme talento nos gramados com polêmicas e factoides fartamente explorados na mídia e redes sociais.    

E que se firmou como uma autêntica máquina de jogar e fazer dinheiro, que ao contrário de qualquer outro jogador, raramente se machuca, não sente as pernas fraquejarem, não pipoca, nem consta que algum dia tenha ficado gripado, com diarreia, febre, ou mesmo sofrido de uma reles urticária. Ou seja, uma fortaleza em todos os sentidos, que desafia o entendimento e a lógica natural do jogo de bola e da vida.  

E como se isso não bastasse,  fonte inesgotável de recursos oriundos da exploração de seu nome e imagem, nos quais figura como um fenômeno midiático com milhões de seguidores em veículos como o Twitter e Instagram, onde cada postagem de fotos com marcas famosas representam mais alguns milhões a fortuna que o coloca entre os atletas mais bem pagos do planeta.

Enfim, um monstro que diferentemente da conotação pejorativa que lhe foi imputada pelo técnico Renê Simões (onde andará ?) logo no início de carreira, ao vê-lo se rebelar acintosamente contra uma ordem de seu treinador no Santos, Dorival Júnior, num jogo contra o Atlético-GO na Vila, parece se alimentar de conquistas e se agigantar nos desafios. 
Se na condição de queridinho dos deuses ou mancomunado com o diabo, não faz diferença no mundo laico do futebol. E muito menos na frívola era do espetáculo.  








  

domingo, 13 de agosto de 2017




            A REVOLUÇÃO PÓS-ORWELLIANA




(Publicado no site Observatório da Imprensa em 20/08/2013)

Na hipótese bastante plausível de que os animais sejam inteligentes, e que possam até comunicar-se entre si, creio que não seria nenhum despautério imaginar que também tenham certas reações comportamentais típicas dos humanos, entre as quais preocupações existenciais. Este, por sinal, foi o mote de um de meus livros favoritos, A Revolução dos Bichos, do guru George Orwell, cujo enredo, como todos sabem, consiste numa sátira ao regime  comunista da antiga União Soviética, que seduzia vários intelectuais da época. O que me leva a pensar como reagiriam os bichos diante da pândega que reina hoje em dia, e da virtual confirmação, com quase três décadas de atraso, da teoria do filósofo Francis Fukuyama, sobre o fim da história formal.

Fico imaginando o que Orwell diria sobre nossos tempos, de como a modernidade e seus valores prostituídos condicionam a vida das pessoas, e principalmente, que conotação daria a sua fábula nos dias de hoje. Em já não estando o autor disponível, e com a devida vênia, resolvi dar minha despretensiosa versão a respeito.

Tudo começa no galinheiro de uma recôndita fazenda, por volta das cinco da matina. Os primeiros raios de sol apontam no horizonte. Uma bela manhã se prenuncia. Uma leve bruma se espalha pelo campo. O ar é fresco e límpido. Ouvem-se os primeiros ruídos matinais. Os primeiros ruídos matinais ? Êpa ! Algo está fora do script. E o tradicional toque de despertar do galo, que costuma saudar o dia antes mesmo do sol raiar, e que até agora, neca de pitibiriba ? Terá perdido a hora ? Estará doente ? Ou coisa pior, partido desta para melhor ?

"Quase não dormi essa noite", respondeu o galo nefelibata à velha e fiel companheira, a galinha mais poedeira do pedaço, antes mesmo de ser questionado a respeito de seu inusitado silêncio. "Mas o que houve ? Teve algum pesadelo ?"
"Antes fosse. Pensamentos sombrios me vieram à cabeça, desses que nos assaltam de madrugada e fazem tudo parecer pior do que é, sabe ?"
"Sei."
"Pois é, comecei a pensar nas coisas que que estão acontecendo, na rapidez com que tudo está mudando, e cheguei a conclusão de que estou, estou..."
"Estou ?...Desembucha logo."
"Sei lá, acho que estou...obsoleto", disse por fim o galo, meio constrangido por se flagrar incomodado em proferir a palavra velho.
"Obsoleto ? Como assim, obsoleto ?, insistiu a galinha, sem atinar direito com o significado da palavra, mas sentindo que era algo sério, para deixar o galho velho tão acabrunhado. 
"Obsoleto, enferrujado,démodé, sacou", retrucou, algo irritado com a falta de perspicácia da interlocutora. Lerdeza, por sinal, típica da espécie, como já se sabia por Orwell.

Nisso, outros bichos foram se achegando. O pato vinha cantando alegremente, balançou o rabo e grasnou algo assim como "não esquenta, amigão. Isso passa". O cachorro aduziu, balançando o rabo. "Tá osso duro pra todo mundo, chefia."
"Mas tem nichos de mercado...", interveio o porco, para surpresa do galo. "Nichos de mercado? De onde você tirou isso, porquinho ?".
"Li na coluna da Miriam Leitão."
"Ah, sei. E o que mais ela disse ?".
"Disse que a especialização é imprescindível, que o caminho das pedras hoje em dia é se aprimorar no que faz."
"Não sei, não, porquinho. Esses entendidos costumam errar pra caramba, pois a teoria na prática é outra. Ser bom em seu ofício às vezes não basta, se a conjuntura não ajuda. Veja o meu caso, sou um galo de boa cepa, cumpridor de seus deveres, mas que adianta se minha função perdeu o sentido ? Se há opções mais baratas ?Hoje em dia é cada vez mais raro ouvir um galo cantando logo cedinho, e quando isso acontece há o risco de um espírito de porco...ops, desculpe, algum zé mané querer botar a gente numa panela. Isso é broxante. Melhor ficar quietinho, se fingir de morto."

"Sábias palavras, seu galo", consolou a coruja. "Vão-se os anéis mas ficam os dedos.Muitas coisas inimagináveis estão se tornando obsoletos, seu galo. A própria imprensa, quem diria. Logo os jornais desaparecerão, dando lugar a edições online, o que será uma pena pois o jornalismo impresso vai fazer falta. O que se ganha em rapidez e agilidade no jornalismo eletrônico, perde-se no esmero e na atemporalidade que caracterizam o jornalismo escrito." E esnobou : "verba volant, scripta manent" - a palavra voa, a escrita fica.

"Vixe, é por causa disso que aqueles jornalões que se empilhavam nas bancas estão cada vez mais magrinhos, raquíticos ? Com o quê vão forrar minha gaiola e a dos passarinhos ? Será que ninguém pensa nisso ?", protestou o papagaio, até então estranhamente quieto.
"Não fala bobagem, louro, que essa imprensa vendida e marrom não faz falta. Já vai tarde," fuzilou o rato, animando-se a sair da toca. "A imprensa só serve para atacar os coitados dos políticos, vê escândalos em toda parte só para fazer barulho, chamar a atenção. Se fosse verdade, estava todo mundo preso, pois não é tudo ladrão, hein. hein ?", completou, cofiando os bigodes. 
"Alto lá, ratazana ! Você não tem autoridade moral para falar uma coisa dessas", encrespou o gato, já pensando em unir o útil ao agradável, ou seja, papar o rato e ao mesmo tempo posar de politicamente correto.
"Calma aí, pessoal. Convém não esquecer que mesmo aqui no celeiro, estamos numa democracia, e todos tem direito de opinar. Quem quiser tumultuar que vá fazer parte dos black ploc, protestar em Brasília ou na frente da casa do Temer.  Nós, bichos, temos que ser civilizados, não podemos nos deixar influenciar pelos maus exemplos dos humanos. Posso estar obsoleto, fora de moda, enferrujado, mas, anotem aí : aconteça o que acontecer, nós os galos, temos uma imagem a zelar."

Dito isso, o celeiro ficou em polvorosa, a bicharada entrou em transe, e até a possibilidade de o galo desbancar o leão como símbolo do reino animal foi cogitada. Ainda mais depois do sarro que um certo macaco abusado tirou do rei das selvas, e cuja história e respectivas imagens, como não poderia deixar de ser, estão bombando nas redes sociais e You Tube. Para quem ainda não viu, passo a resumir :
Acostumado a brincar e zoar com todo mundo no zoológico, o macaco peralta foi desafiado a - digamos assim - chutar o traseiro do leão, para provar sua coragem. Aposta feita, o macaquinho esperou o tradicional cochilo do leão para cumprir seu intento. O que foi feito em meio a maior algazarra de toda bichara, atraída pelo insólito desafio.
O que se viu a seguir foi um corre-corre dos diabos, que rapidamente extrapolou os muros do zoológico e adentrou pelas vielas dos bairros adjacentes, com o leão doido para vingar a honra ferida. Corre pra lá, corre pra cá, e eis que o macaco se viu encurralado num beco sem saída. 
Com o leão nos calcanhares, enfiou a cara num jornal que achou no chão, e esperou pelo pior.
"Ei, neguinho. Por acaso viu um macaco entrando nesse beco ?," vociferou o leão, babando de raiva. Ao que o macaco folgado não resistiu e respondeu : "Por acaso é aquele macaco que chutou a bunda do leão ?"
"Caraca !! Não brinca que já saiu aí no jornal !? Tô ferrado ! A imprensa é foda !

Moral da história : quem muito encuca, vira motivo de galhofa ou funde a cuca.      





  



Postagem em destaque

                          o quanto sei de mim Faço do meu papel o sonho de um desditado.  Cavalgo unicórnios a passos lentos, para que o go...