sábado, 1 de fevereiro de 2020




                               dar a volta por cima







Há quem diga, a meu desdouro,
que sou devasso.
Que não sou fiel e que gosto de putas.
Seria trágico, se não fosse cômico, 
levar à sério tal disparate nos dias de hoje.
Em que o conceito de devassidão e putaria
nunca foi tão elástico.

Ora, não sou santo, nem demônio. 
Não sou diferente da grande maioria.
De mais a mais, quem me difama, 
tem muito mais a esconder do que eu.
É só uma questão de tempo para tudo
vir à tona.
De certa forma, sou um livro aberto.
Tive minha vida vasculhada de cabo à rabo.
Me vigiaram, me hackearam, 
e nada encontraram além do que nunca
foi segredo.
Que gosto de mulher.
Que gosto de sexo.
E hoje em dia, o que eu faço ou deixo de fazer,
não é da conta de ninguém.
A vida segue.
E o que há de tão bom que não tenha lá suas ciladas ?
Cada um cava o seu próprio descaminho.
Uns se ufanam daquilo que não são.
Outros são defenestrados pelo que assumem que são.
Quem é melhor ? Quem é pior ?

No vasto mundo, ninguém está apto a julgar
ninguém.
A atirar a primeira pedra.
O quê, no fim das contas, nos consome
é exatamente o amor  
que agoniza face às carências exauridas.
Na procura constante das fantasias 
descoladas de seu tempo,
o fragilizado amor cedo ou tarde sucumbe.
Por qualquer motivo, sob qualquer pretexto, 
o que era sublime em maldição se transforma.
No fim de tudo, curar-se do mal,
sem ceder à maldade,
é só o que nos permite dar a volta por cima. 























domingo, 26 de janeiro de 2020


 



                          ou dá ou desce








Tudo tem o seu momento.
É preciso esperar o momento certo.
É preciso estar maduro.
Nem antes, nem depois.
Para não colher verde, ou podre.
Tem de ser no momento certo.
Sem pressa, sem dormir no ponto.

É o ciclo natural das coisas.
De todas as coisas.
Não pressione ninguém a fazer o que não quer.
Para o quê não está preparado.
Mas também não espere demais.
De repente, outro colhe.
Numa dessas, é muito tarde.
Tudo é uma questão de timing.
Chamar o filho adolescente à responsabilidade.
Intimar a namorada que não quer
nada com nada.
Procrastinar é um atraso de vida.
Ou dá ou desce, 
como se dizia antigamente.






                                jogar areia e seguir em frente






houve um tempo em que ele se sentia privilegiado,
como se tivesse ganhado na loteria. 
na loteria do amor.
tinha uma bela e jovem mulher,
que demonstrava de todas as formas que o amava.
era alegre, carinhosa, espirituosa,
não havia o que ela não fizesse para agradá-lo.
quando levantava cedinho o café já estava posto,
quando saia para o trabalho, ela fazia questão de dar um tchau
da varanda.
havia dias em que recebia mensagens carinhosas
pelo serviço de radio-mensagens,
às vezes encontrava cartinhas de amor no bolso,
tinha, enfim, tudo o que um homem precisa
para ser feliz. 
e isso que nem tudo eram flores,
como em qualquer relacionamento, 
principalmente, devido ao ciúme dela em relação aos dois filhos 
de seu primeiro casamento.
depois de um tempo, começou a trabalhar com ele,
e ao contrário do que se poderia supor,
a convivência praticamente 24 horas por dia
acabou estreitando ainda mais a relação.
ao menos era o que parecia.
até que ela engravidou.
até que um menino saudável e risonho veio ao mundo.
e as coisas nunca mais foram as mesmas.
para o bem e para o mal.
pois junto com a felicidade incomparável do nascimento
de um filho, 
vieram as responsabilidades e consequências. 
à dano da relação.
ela totalmente devotada ao filho. 
ele, repentinamente escanteado, relegado a segundo plano.
situação que culminou numa séria crise,
logo no primeiro aniversário da criança,
contornada, mas não debelada. Posto que ela
continuou se dedicando inteiramente
ao filho, 
o que fez com que se reaproximasse dos pais,
e com o tempo, construísse um mundo à parte.
em que ele não fazia parte.
anos se passaram dentro deste contexto, 
ela mal tomava conhecimento de sua rotina,
nunca mais pôs os pés no antigo local de trabalho, 
e ele, 
ainda mais isolado depois que parou de jogar bola,
foi se sentindo cada vez mais solitário, infeliz.
e pior ficou quando se afastou dos dois filhos, 
dois ou três anos dolorosos, que lhe custaram muitas
madrugadas insones.  
tudo somado, não passou incólume
à chamada crise da meia idade, 
em que uma fatídica pulada de cerca quase pôs tudo à perder.
traição que ela, para sua surpresa,
não só perdoou como empenhou-se para salvar o casamento. 
e o que ele chegou a achar que era o fim de tudo,
acabou lhe devolvendo a ilusão de que ainda era amado.
só que não. 
aos poucos viu que nada mudara, 
que a obrigação de mudar competia apenas à ele, 
cuja rotina insalubre continuava a mesma, 
ao passo que ela se mostrava cada vez mais distante e fria.
mal sabia ele que era exatamente este 
o troco que ela estava orquestrando.
o epílogo de uma rica história que ele jamais 
imaginou que terminasse de forma tão deprimente. 
com gosto de uma grande farsa.
cujos detalhes sórdidos, 
ele diz que prefere fazer 
como fazem os gatos, com seus dejetos :
jogar areia e seguir em frente.

                              







  









  






















   
                           

                           VERME




saber-se preterido,
reduzido a vagos desejos,
pequenos prazeres,
pesarosas saudades, 
existindo sem existir,
deambulando feito sombra de uma árvore
esquálida e estéril. 

saber-se nem herói, nem vilão,
nem algoz, nem vítima,
apenas impotente
para mudar a natureza das coisas.
querendo mas não podendo.
nadando contra a maré,
a espera de uma tábua de salvação.

saber-se insignificante,
mero espectador, 
simples provedor,
às vezes nem isso,
alguém que deixou de ser,
de fazer falta,
vivendo de nunca ir além 
de sonhos já sonhados.

saber-se às portas da senilidade,
sem perspectivas,
entre flores e cruzes vagando,
sem nenhum amigo, nenhum irmão,
apenas solidão,
resignado ante o espetáculo banal que se extingue.

saber-se incapaz de sorrir
como antes,
incapaz de confiar,
vivendo de aparências,
consumido pelas ausências,
a espera do que já não tem perdão.

saber-se um verme,
que da vida furta o que o sustenta.












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