meu guapo inesquecível
A quién puedo preguntar qué vine a hacer
en este mundo ? (Pablo Neruda)
Acordei sobressaltado, com o telefone tocando. Às 4 da matina, boa coisa não pode ser.
- Alô !
- E aí, gringo. Tudo bem contigo ?
- Como ? Quem tá falando ?
- Não tá reconhecendo minha voz ?
- Não estou não, isso lá é hora de brincar de adivinhação ? Quem tá falando ?
- É o Vado, pô !
- Vado ? Mas que Vado ? Não conheço nenhum Vado.
- Que isso, gringo. Tá certo que faz um tempão que a gente não se fala, mas vai dizer que não lembra mais do seu guapo do Clube da Ponta ? Do Saldanha ?
- Que palhaçada é essa, tá louco, cara ? Você já morreu, quer dizer, o
Vado que conheci morreu tem uns cinco anos. Fui no enterro dele.
- Opa ! Foi não, não vi você lá, gringo.
- Tá certo, eu só soube que ele tinha morrido semanas depois. Mas vamos acabar com essa brincadeira sem graça, qual a sua, hein ?
- Caramba, tu ainda tá duvidando ? Então pergunta aí qualquer coisa
que a gente passou, dos treinos na praia, das brincadeiras no sítio do
Nestor.
- Meu Deus, não acredito nisso... Mas tá bom, já perdi o sono mesmo. Deixa ver... Ah, diz aí quem foi o cara que te fez quatro gols de falta num jogo no Saldanha ? Quem foi ?
- Pô, sacanagem você lembrar logo disso. Tantas defesas memoráveis e você me faz uma pergunta dessas. Foi o Mario Papeta. Nunca vi ninguém chutar daquele jeito. E olha que não falhei em nenhum deles...
- ...
- Alô, gringo, ainda tá aí ? Alô !
- Eu, porra...
- Acredita agora ?
- Como pode isso ? Só pode ser alguma pegadinha.
- Que pegadinha, gringo. E quem mais te chamava assim ? Eu sei que é difícil acreditar, mas sou eu mesmo. Tu sabe que eu sempre gostei muito de ti, e como surgiu uma brecha aqui, resolvi aproveitar. Tô te vendo meio desanimado, desiludido com a vida, aí pensei, preciso dar uma força para meu camarada.
- Isso é loucura, não pode estar acontecendo. Mas o que está errado comigo ?
- Vejo você muito isolado, descrente de tudo, até deixou de jogar bola. Tem que aproveitar a vida, irmão, dar valor as coisas, enquanto é tempo. Veja o que aconteceu comigo, com essa doença que apareceu de repente, com tanta coisa ainda pela frente.
- Tem razão, mas tem horas que a gente baqueia, sabe como é, sacanagens...
- Ah, isso sempre tem. Não tem escapatória, o ser humano é complicado. A vida é difícil. Mas não pode levar a ferro e fogo. Relaxa, faz a tua parte que as coisas se ajeitam.
- Se fosse simples assim...
- Verdade, não é fácil manter a cabeça no lugar, segurar a barra. Mas procura ver o lado bom, você é um cara do bem, por isso fiz questão de falar contigo. Pra você saber que no fim tudo acabará bem.
- O fim, como ? Por acaso o meu fim está próximo ?
- KKKKK... Fica tranquilo, gringo, tua hora ainda não chegou. Falando nisso, eu tô na minha, preciso desligar antes que deem por minha falta. Além disso, tá na hora da peladinha...
- Peladinha ? Aí tem bola também ? A essa hora da madrugada ?
- Aqui não tem noite, é sempre dia de sol, céu azul...
- Que beleza. Mas me diz aí, vai jogar de quê ?
- Goleiro, cara, goleiro. Eles não me deixam jogar na linha.
- Ahn...
- Eles sabem que eu desiquilibro.
Aí eu tive certeza, com essa humildade toda só podia ser o meu saudoso amigo Oswaldo Garcia Filho, o Vado, que se foi tão prematuramente, e que inspirou essa pequena e singela homenagem.
* Escrevi essa crônica, suprimido alguns trechos sobre futebol, para a coluna Jogo Aberto, do Jornal A Tribuna, da qual fui colaborador entre 1980 e 1985.