domingo, 25 de junho de 2023



                     a engrenagem


                         tela de Claude Verlinde



Às vezes sinto como se minha vida

não fosse minha.

Não somos nada se não tivermos serventia.

Daí a tristeza de ser velho.

Daí o desprezo por aqueles que não são 

ou não podem ser úteis.

Ninguém respeita quem não impõe respeito.

Ninguém respeita quem cala.

Ninguém respeita quem não tem nada à oferecer.


Somos meras peças de uma engrenagem fria 

e calculista.

De reposição infinita.

Todos descartáveis.

Uns mais, outros menos, mas descartáveis.

A medida que fraquejamos.

Envelhecemos.

Caducamos.


Em meio ao tempo que avança, inexorável,

rezo para não esquecer quem eu fui.

Quem eu sou.







 

sábado, 24 de junho de 2023



                             sabedoria




Dentro de minhas limitações, vivo o auge da sabedoria.


Tento não me estressar mais com tolices, tipo assim, meu time

perder, discutir a troco de banana.


Só faço o que gosto, mas não sou intransigente. 


Me permito certas extravagâncias sem dor de consciência.


Continuo confiando, acreditando nas pessoas, nunca 

me arrependi por agir de boa fé, pois nenhum dano

me derrubou.


Dou, me doou, sem esperar nada em troca.


Não alimento mais expectativas de espécie alguma.


Não pré-julgo. 


Não professo nenhum culto, nenhum credo, apenas

e tão somente a praticar o bem.


Entendi que o prazer de procurar pode ser melhor 

do que o de encontrar.


Resisto ao errado, ao pecado, mas não sou de ferro, e muito

menos santo. Veneno em pequenas doses não mata.


Não tento me passar pelo que não sou. Estou com

Fernando Pessoa : prefiro ser ignorado

pelo que sou, a ser admirado pelo que não sou.


Descobri que posso prescindir de amar, mas não do amor.


 




 








                                     manhãs


                        tela de Vladimir Kush



A manhã emudece. Lamento sobre a penúria

do vasto mundo.

Em tempos incertos, ir por vários caminhos provê 

o memorial de fracassos.

Ante o que foi e o que veio a ser, plante uma bananeira.

Miséria pouca é bagagem.

Nada é mole, muito menos a rapadura.

O problema todo é que a realidade sempre fica

aquém da expectativa.

Alternamos bons e maus momentos extravasando

desiquilíbrio, descancelando o raivo de privar,

o laivo de sumir.

O incompreendido muda de lado, se faz de desentendido.

No dia lindo de morrer, o terror ignora o cessar fogo.

Vem de acessar o meu dispor o inquilino de todos 

os ofícios. 

Invisto-me de vilegiaturas para adulterar a trama.

O mal falado já está difamado.

De oitivas e platibandas o psicomorfo idolatra o inimigo.


A manhã ensandece. Qualquer coisa é melhor que nenhuma.

Olhos vitruvianos enxergam tudo.

A pior das espécies faz jus a fama.

Que diferença faz se o crime tergiversa ?

Tranquila, a consciência implode.

Inabalável é a fé do sicofanta.

O velho poço não tem fundo. Nem o mundo.

Quem vive a favor da realidade levante o dedo.

Onde tudo é bruma, o descortino do novo cultiva

tudo o que lhe tanja ( que o diga Janja !)

Subterfugir esconderijos, onde vamos parar ?|

Ponhamão na cabeça, o excesso por exceção se revela.

Povo que não se rebela segrega o devir.

O egrégio consolo é o dolo que o tumor entorpece.

A manhã é outro dia.

Ó sole mio !














sexta-feira, 23 de junho de 2023



                     quem se importa ?



O que importa se a lua é torta,

se Inês é morta, 

a voz entala, 

e o chicote estala ? 


Quem se importa se a noite encavala,

a verdade resvala,

a justiça rebola 

e o mal deita e rola ?


O que importa se ninguém se importa,

se o país vai para a grota,

se é proibido ser patriota,

se o que não falta é idiota

para votar em vigarista,

por acaso presidente desta bosta ?





 



 



 




 

                     

                        quando o amor cumpre seu prazo


                                  


Nítida, calma, a memória descobre-se 

para o que se desfaz nas vagas do tempo. 

Em cada etapa da vida o amor é diferente. 

Há que colher as flores das ausências.

As coisas cumprem-se em sigilo e esperas.

Sem remédio para as feridas, a não ser o sol maduro

da soledade.

Entre os pressurosos anúncios sem data, a ilusão, o engano, 

já são tarefa cumprida.

Quando o amor cumpre seu prazo, já não 

nos decepciona mais. 







 


terça-feira, 20 de junho de 2023




                

           no limiar do adeus



Sinto o cansaço bater nos ossos.

As coisas plácidas me encantam.

Gosto mais de animais do que de gente.

Família tem o peso do mundo.

De todas as coisas que a vida me imputa,

de ser feliz sou inocente.

Estou mais para indecente.

Híbridos sentimentos me assaltam, depois

que deixei de ser casto.

Novos atores, velhos enredos.

Em tudo há infâmias, segredos.

Vejo meu tempo se esgotando gota a gota,

dei adeus à premência.

Acontece que do nada surge o inesperado.

No limiar do adeus, o que falta realizar já se realizou. 

Os deuses não se submetem a barganhas.

Muito menos as Moiras.

O paralém desconhece a sabedoria.

Consta que em Auschwitz não se furava fila.

A verdade de cada um ignora tudo 

que não lhe convém.

A coisa mais bem repartida do mundo

é a burrice (apud Murilo Mendes).









   




                o vício da cura





Carrego um pouco de tudo

Pedras preciosas e entulhos

Coisas que vou garimpando

Nos descampados do mundo


Sou um pouco de tudo

Gente fina e vagabundo

Não sou herói nem bandido

Nem bunda de fora 

nem calça de veludo.


Sou um sujeito de fino trato

Mas também sei fazer barraco

Liberal ou cabeça dura

Sou o vício da minha cura.




 

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