quarta-feira, 27 de março de 2024



                     tiro de misericórdia





De tanto maltratar a consciência, parto do princípio 

de que faço jus a meu quinhão de incoerências.

Deixando-me tomar pela quietude das verdades que se bastam,

em que respiram por mim espaços esquecidos.

Consolando o coração partido que regressa à noite

como um animal ferido.

Estou só como o túmulo de um morto, porém, 

mais vivo que nunca.

Livre dos conflitos e joguinhos doentios imputados

pelo jugo consentido do amor.

Minhas mãos, calejadas de rudes conquistas, buscam

a semeadura de fomes e sedes candentes.

Você sabe, não há encanto que não acabe.

Não há relação que não se desgaste, e por fim, deteriore.

Não há vontade que não esmoreça.

Não há beleza que perdure.

O amor não é garantia de nada, porque logo acaba, 

exigindo sacrifícios

quase sobre-humanos para manter as aparências.


"Não te amo mais. Quero me separar", me disse ela,

calmamente, acabando assim, em poucos segundos,

com uma relação de 18 anos.

Acabando em termos, melhor seria dizer dando 

o tiro de misericórdia naquilo que já se arrastava há tempos.

A verdade é que a gente faz de tudo para dar certo,

se sacrifica, representa, mente,

mas quando a insatisfação toma conta do recinto,

traição ou separação é só uma questão de tempo.

Culpa de quem é o que menos importa.

Provavelmente dos dois.

Pelos motivos de sempre.

O amor vive de clichês.





 




terça-feira, 26 de março de 2024



                 o fogo de Prometeu



 

Quebram-se as muralhas graciosas, queimam 

as florestas exuberantes, boiam os corpos

em perfeita consonância com os fenômenos da terra.

A horrenda ciência produz milagres entre perversões

disfarçadas.

A vida se renova matando gente, amando e odiando

no mesmo abraço.

O caos profundo tange prazeres sinistros que 

corrompem a alma.

Ah, a maldade humana, grandiosa na força bruta,

no heroísmo sem bravura, no remorso sem consciência,

gargalhando façanhas perversas.


Há uma coerência sombria no aboio da civilização.

Transcende o conhecimento humano, sob a batuta de Satan.

A maldade não se extingue, não dorme, não descansa.

Seu legado eterno conspurca a criação.

Cheia de passado e presente, se perpetua roubando 

o fogo de Prometeu.

A luta entre o bem e o mal nunca encontra termo.



  

domingo, 24 de março de 2024


                          

                               gratidão





Por todas as coisas que tive e me fizeram feliz.

Por todas as coisas que ganhei e perdi.

Por todos os momentos que passaram como fogo

e látego. 

Por tudo que aprendi e guardei para além 

das agônicas provações.

Por toda vez que escapei do pior, que resisti aos males 

que absorvem e fermentam.

Pela sorte de ter todos os sentidos aguçados,

de ter vencido a tristeza tenaz, conhecido a benção

da solidão voluntária e libertadora.

De sempre ter dado a volta por cima, como um mergulhão

que volta à tona.

Por ser como sou.

Humano.

Inquieto.

O grão coração crepitando acima de tudo.

Amoroso como um tigre com sangue no focinho.

Por tudo, Senhor, dou graças.









                   o estuário amoroso





Nunca se sabe o que fazer com a vida.

Vivemos cercado de dúvidas, e eventualmente de dívidas.

E sem dúvida, o que não acontece é a única coisa

que permanece.

Jogamos o jogo para continuarmos perdendo.

Para ferir e sermos feridos.

Para gerarmos novas vidas e enterrarmos nossos mortos.

Passam os dias, transfigura-se a matéria,

é, pois, no estuário amoroso que tudo se resolve.

Para o bem ou para o mal.

O amor que passou, o amor  que não aconteceu.

O que foi e não foi aquilo que foi, 

de uma forma ou de outra

continuará existindo.

Mesmo que nunca mais sejamos os mesmos.











                  bucha e canhão





A verdade é que nunca nos entendemos.

A não ser nada cama.

Embora para mim, nunca tenha sido apenas sexo.

Você foi um desafio que teimei em decifrar.

Fui muito além do que podia imaginar.

Entrei no teu jogo até cansar.

Agora é você que cobra o que não posso dar.

Não porque eu não queira.

Somos como água e óleo.

Uma mistura explosiva.

Bucha e canhão.

Ambos sempre cheios de razão.

À maltratar o coração.

Até o sexo deixou de ser bom.

Já nem sei se ainda cabe reflexão.

Ou é hora de largar mão.










                     clausura sem prisão





As larguezas de meus itinerários se estreitam.

Eu e essa clausura sem prisão, que, sem amor,

afia a foice cega da minha poesia.

Profundo e imundo, meu coração se acostumou

à ódios e insultos.

Minha alma corcunda circunda o inaudito.

Vivo entre muros de arrependimentos e mesmices

convencionais.

O clamor das vitórias e dolos converte-se à inquieta 

alacridade das impermanências.

Ironicamente, tudo se perde na fugacidade das palavras.

Minhas verdades, embriagadas de sensações e equívocos

passados, fomentam desentendimentos crônicos.

Eu e tu, tu e eu, somos opostos que sarabandam apoteoses

de ilusão.

Tudo entre nós remonta à alucinações cruciantes.

Vivemos entre as escaramuças de nossos desiguais.

Não há esperança onde não há diálogo.

Minhas culpas e meus desatinos entretecem-se

nas ramas de tuas prevenções.

Engravidei-te em desespero de causa.

Para que uma filho possa abrir novas searas.

Ou nos afastar de vez. 




 








quinta-feira, 21 de março de 2024



                     animal transvestido de gente





Não esperem que eu seja coerente.

Muito menos racional.

No fundo não passo de um animal 

transvestido de gente.

Às vezes inconsequente.

Às vezes beligerante.

O meu melhor nunca é suficiente.

Nem a mim satisfaz.


Trato a mania de perfeccionismo 

a socos e pontapés. 

Me recuso a viver como um peixe no aquário.

Uma vida condicionada por antigos dissabores,

ex-rostos, ex-amores. 

A dura labuta não justifica viver na mesmice.

Mesmo apagando como uma vela no fim,

me recuso a definhar.

Cuido do corpo, da aparência, e principalmente do intelecto.

Acalentando sonhos como um quixote 

a perseguir diletos moinhos de vento. 







  














 

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