sábado, 22 de fevereiro de 2025


                    monstro de onze cabeças



Habita entre nós um ente antigo e monstruoso,

que vive de devorar as próprias entranhas

com a fome insaciável dos chacais.


Onipresente, infunde medo e asco ante o seu reinado

de obscuro despotismo, 

camuflado por poderes corrompidos e arbitrários.


À maneira dos tiranos, arvora-se de legislador, juiz

e carrasco, perseguindo e punindo a seu bel prazer, 

sem que nada nem ninguém lhe faça frente.


Monstro de onze cabeças que, a exemplo da Hidra de Lerna,

clama por um Hércules capaz de decepá-las todas

de um só golpe.


* Inspirado no poema Uma Criatura, de Machado de Assis.




                      a garota do job 





Amo a menina que não me ama.

Age como se eu não existisse.

Ignora meu olhar faminto.

Passa e nem olha para o lado,

enquanto sofro calado.

Às vezes penso em algum abordagem ousada.

Fazer alguma proposta obscena.

Vai que ela seja do job...



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025


                       contumácias




 


Eu vejo as nuvens que se movem

em cada manhã de beleza ultrajada.

O que sobra de um tempo feliz encontra o seu lugar,

sem meta nem revolta. 

Dispo o meu disfarce, visto a carapuça, 

agora que todos os equívocos pilham-se

dissecando o recalcitrante sonho inventado.


Procuro a paz que não me procura.

Abraço a vida que preenche o meu vazio

iluminado em contumácias. 

Dos desejos não saciados do que não vivi, o pouco

é muito.

Onde a beleza é áspera e o coração um poema inacabado, 

invento afetos que resumem minha vida.








                                vazio




Tua indiferença

já não me machuca.

Assumo o vazio que me circunda.

Para que o nada me preencha.



                               puta velha




Nada acaba quando termina.

Vivemos de esperar o que não chega.

O que nos antecede vive burilando o coração

sem tê-lo.

Não há pressa na delicada praxis dos afetos.

Saneadas de calma e de luz, as histórias se repetem

sem acabar, revestidas

das mesmas incertezas e angústias.


Começo, meio e fim.

Antes, durante e depois.

Entre o princípio e o epílogo,

tudo se ajusta e desconjumina.

A vida é uma puta velha 

em traje de gala.





domingo, 9 de fevereiro de 2025




semeadura






Nossas dores são algemas incrustadas de feridas catatônicas. 

Nossos amores contam seus passos envoltos em trapos amorfos.

O que há para fazer salvo viver como se não houvesse

outra vida ?

Incógnito, o coração indomável cavalga hipocampos de trânsfuga.

O presente, um halo da eternidade, se agarra ao póstumo acerbo 

de potestades. 

Sonhos drenados repartem os silogismos do abandono

em ligas de tungstênio. 

No horizonte precário do existir, passam com atraso os cortejos

mancos das elegias.


Meus olhos transformam tempestades em escamas, como

um rio que bebe as nuvens.

Me defendo das imposturas da fé deixando para trás 

a inconsútil fratura da alma.

Livre da falsa auréola das virtudes, mijo bazófias politeístas. 

Não sou nem sombra do que fui, mas meu sêmen cansado 

ainda faz filhos.


 




 


                             o pecado original





De dor a humanidade entende.

Sentir dor, infligir dor, sina recorrente 

de um mundo doente.

De gente que mata, tortura, padece de todos os males, 

que olha com desdenhosa piedade 

o mal que semeia.

É sempre o mesmo ritual macabro que nunca passa,

diante de um deus de pedra que legitima todas

as formas de morte.



Tudo remonta ao pecado original.

Que condenou a humanidade a penar eternamente.

Somos paridos com o mal no coração.

O amor acaba mas o ódio não.

Que o diga os filhos do Tamerlão, do Alcorão.

Proibidos de amar quem não professa 

a mesma religião.


O mal está em toda parte.

Os bons pagam pelos maus.

Destruímos, torturamos, matamos, inocentes 

como crianças que não sabem o que fazem.

"Perdoa, pai, eles não sabem o que fazem", atestou

o Crucificado, fiador de uma doutrina de perdão

que anula o passado. 

De um mundo perverso, pervertido, 

erigido à ferro e fogo,

que não merece ser perdoado.





 



 







 

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