sábado, 29 de junho de 2024





                        o vício da beleza





Depois de um tempo, tudo perde a graça.

O vício da beleza um dia acaba.

O consolo é que as perdas nos tornam fortes.

Contam-se os anos em detrimento dos sonhos.

Uma sabedoria inútil flui através dos cansaços.

Agora que tão somente a falta do amor permanece,

minha poesia morre por falência múltipla de afetos.



 

domingo, 16 de junho de 2024

                              o velho amor




O tempo,

que é o mais longo dos caminhos, 

enxovalha e purifica,

amaldiçoa e beatifica.

Nos autos-de-fé da alma, a carne queima 

em impiedosas fogueiras,

para que se cumpram 

os mundanos ritos.


Vivemos de esquecer, para sobreviver 

nem sempre esquecendo, 

e por isso mesmo padecendo.

Os mortos velam sua própria memória,

em perdidos e resgatados sonhos.

A fuga do tempo procura a nostalgia e o olvido.

Cada remordimento pressagia o que ganhamos

e o que perdemos.

Defenestrado, o velho amor resigna-se 

a estes versos.





 







sábado, 15 de junho de 2024


                            a farsa de viver





A farsa ocupa-se de si mesma 

como o triunfante alicerce de um lúgubre equinócio.

Assim o crânio lateja, a alma se quebra,

os irmãos se maltratam,

a vida implacavelmente horrível

murcha e perece.

O chão dos percalços caminha às cegas.

A graça pueril de pedras novas e antigas

ignora o périplo das debandadas.

Ando e desando encontrando-me em cada desencontro.

O que há de vir é meu tesouro.

Não morrer vulgarmente é o lume do meu descaminho.

Ardo funestamente a cada desvaio.

Fugir de mim já não fujo.

Os ledíssimos desenganos aludem 

a interminável farsa de viver.



quinta-feira, 13 de junho de 2024




                   qualidades estéreis





Ai de mim, sou tão pouco para quem 

exige tanto.

Qualidades estéreis não tem

sede nem fome.

De que vale o justo sem nexo ?

Uma rosa sem espinhos ?

A bondade amarga a verdade enferma.

O que já não presta arreia as calças.

Provavelmente morto serei melhor.

Mas a vida me penetra em potestades 

de quimeras.

Sofro e convalesço de exaltações terrestres.

Ninguém sabe a linhagem a qual pertenço.

Que espécie de animal serei ?



 


                     elegia post mortem



Prezo mais meus defeitos

do que minhas (parcas) virtudes.

Em tudo que a memória translada,

a irmandade atabalhoada 

fede a escória.

A forma mais estranha remenda-se, soluça ao pé

da tumba, conquanto tenta ser pobre como os ricos.

Ó, glória !

Ó, vitória !

Entrelaçam-se as fundições dos versos

ferozes, à luz da loucura da razão.

Destemidos cantares seguem à frente

dos próprios atos,

engolindo o choro inexato.

Olhos díspares transformam-se

em luxúria.

O medo cheira a tijolo e a perdão.

Mas, no entanto, é um aprazível

inchar-se de chumbo que liberta

a laica humildade.

Que há de ser inesquecível.

Mesmo que nada aconteça, mesmo que a infausta 

analogia das lembranças ferva em desgosto. 

Arrosta-nos a grandeza póstuma dos holocaustos.


 


 

 


                           ao pé da tarde


Apalpo minha penetrativa memória

sem pudor nem desleixo.

Embaixo da cama o pó se acumula.

O gato se esgueira pelo telhado

em busca de algum pássaro descuidado.

O dia azulado pendia ao rés da tarde,

quando, subitamente,

algo se partiu.

Mas ninguém viu,

além de mim.


terça-feira, 11 de junho de 2024


                     cavernas bipolares





Entenda

que um deslize zomba do saltimbanco. 

Enquanto o odor de chifre queimado dura,

fique frio, saia de fininho.

Não é triste nem alegre

o itinerário amoroso que se despede

violentamente.

O que você esperava ? Finais felizes não se compram

na farmácia.

A falácia embute sabedoria solitária.

Às vezes é só uma questão de ponto de vista.

O tato sente o cheiro do logro

quando o tempo se esgota.

O último que tampe a porta, se a tampa

não servir apague a luz.

O crente virou ateu quando Deus

não o atendeu.

Falar é fácil, o problema é raciocinar.

Os fatos não importam, as versões sempre prevalecem.

Juras dizer a verdade, somente a verdade, nada

mais que a verdade ?

Mas que verdade, cara-pálida ?

A do pretor-mor da República não vale.

Mentiras sinceras são mais interessantes.

Meus amigos são todos umas bestas quadradas.

Ou serei eu o abestado ?

Ninguém sabe das minhas cavernas bipolares.

Agora mesmo, estou feliz e descontente.

Paciente e intolerante.

Solícito e insuportável.

Sou aquele que dá graças pelo que não tem.

Incógnito, atravesso o Cabo das Tormentas

alheio a galhofa, ao escárnio.

E daí se embucetei-me em desvarios fervorosos ?

Melhor do que enfiar a cabeça na privada.

Ou não ?

Me diga você, sabichão.  


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