o aborto
Não sou ninguém.
Não sou nada.
Não existi.
Não vivi.
Não senti.
Não nasci.
Sou apenas um embrião.
Do tamanho de um feijão.
Um aborto.
Mereço ser morto ?
correspondências
Assim como uma pedra sempre será uma pedra,
uma vez puta, sempre puta.
Hoje eu sei
onde foi que eu errei.
Toda vez que amei
nunca me entreguei.
Já não sonho.
Sonhar é para os tolos.
Quem sonha não vive.
Se distrai da realidade.
Com a qual não mantém correspondência.
Sequer afinidade.
Quando muito uma certa urgência
de amar e ser amado.
No que, por sinal,
não há nada de errado.
breve canto
do amor
não compartilhado
Tudo é solidão. Silenciosamente, buscamos correspondência
em fortuitas e aventureiras conquistas.
Distraídos com os privilégios casuais da busca.
Dispersos pelos indecifráveis labirintos do tempo.
Tecendo e destecendo máscaras, agonias, alvoradas.
No breve canto, que não teme a dor, sequer a morte,
o duradouro e o desvalido se entretecem.
Em meio a perdida gente, dias sem data ignoram o repouso.
Versados em causas inúteis, plantamos platitudes
que alguns transformam em ouro, singraduras, servidão.
A servidão que é metáfora e trama.
Nos sonhos que se desfazem em outros sonhos.
Em que o ontem e o hoje são iguais.
Solitários, como o amor não compartilhado.
para o bom entendedor
Ah, os leitores, fãs de poesia.
Tão solertes e perspicazes.
Confundem maçã do rosto com a fruta.
Incapazes de enxergar
nada além da realidade preexistente.
Se atém a denotação em detrimento
da conotação.
Justamente a essência da poesia.
A atemporalidade, a metalinguagem.
"Não apenas conjugar os versos
mas fazê-los sangrar", como nos diz
Álvaro Pacheco.
um filho da puta como outro qualquer
Tudo o que somos, tudo o que fomos, cabem numa maldita
caixinha de madeira, ou numa urna em forma de vaso.
Que é onde colocam as cinzas da gente depois da cremação.
Já pensou ? Já vislumbrou essa possibilidade ?
Meio sinistro, é verdade, mas melhor, penso eu,
que apodrecer aos poucos, comido pelos vermes, até virar
um amontoado de ossos,
e por fim no pó do qual, dizem as Escrituras, todos viemos.
O fato é que a gente vale muito pouco.
Isto na melhor das hipóteses, porque a verdade
é que não valemos nada.
Nada que justifique a soberba, a empáfia, a bazófia que tanto
se vê por aí, ainda mais depois do advento
do mundinho das redes sociais.
Tudo bem que, como diz o sábio Bukowski, sempre
haverá dinheiro, bêbados e putas para contrabalançar,
Para nos fazer sentir menos escrotos.
De repente, até uma boa pessoa.
Boa o suficiente - em nossa cabeça - para julgar os outros.
Se achar melhor que os outros.
No fundo, uns pobres coitados, que se iludem a si mesmos.
Acreditando na farsa que montam.
Até levarem o tranco inesperado.
O golpe de misericórdia.
Mas quem sou eu para julgar, apontar o dedo.
Por mais sacaneado, ultrajado, traído, não posso esquecer
que fiz a mesma coisa. Sacaneei, ultrajei, traí.
Em suma, um filho da puta como outro qualquer.
Que por razões desconhecidas, a vida poupou, condescendeu,
foi generosa.
O que não impedirá que um dia não passe de um punhado
de pó
numa caixinha
ou vaso
que ninguém sabe ao certo
o lugar mais adequado
para jogar.
o quanto sei de mim Faço do meu papel o sonho de um desditado. Cavalgo unicórnios a passos lentos, para que o go...