sexta-feira, 16 de setembro de 2022



                                 o aborto




Não sou ninguém.

Não sou nada.

Não existi.

Não vivi.

Não senti.

Não nasci.

Sou apenas um embrião.

Do tamanho de um feijão.

Um aborto.

Mereço ser morto ?


 



                       correspondências





Assim como uma pedra sempre será uma pedra,

uma vez puta, sempre puta.


           Hoje eu sei

              onde foi que eu errei.

              Toda vez que amei

              nunca me entreguei.


Já não sonho.

Sonhar é para os tolos.

Quem sonha não vive.

Se distrai da realidade.

Com a qual não mantém correspondência.

Sequer afinidade.

Quando muito uma certa urgência

de amar e ser amado.

No que, por sinal, 

não há nada de errado.






 


                            nada mais traiçoeiro



 

o amor é ligeiro

faceiro

matreiro

nada mais traiçoeiro.

encanta

seduz

consome

arde feito fogo

até a exaustão.

quando acaba o tesão

vira carvão. 







           breve canto 

           do amor 

           não compartilhado





Tudo é solidão. Silenciosamente, buscamos correspondência

em fortuitas e aventureiras conquistas. 

Distraídos com os privilégios casuais da busca.

Dispersos pelos indecifráveis labirintos do tempo.

Tecendo e destecendo máscaras, agonias, alvoradas.

No breve canto, que não teme a dor, sequer a morte,

o duradouro e o desvalido se entretecem. 

Em meio a perdida gente, dias sem data ignoram o repouso.

Versados em causas inúteis, plantamos platitudes

que alguns transformam em ouro, singraduras, servidão.

A servidão que é metáfora e trama.

Nos sonhos que se desfazem em outros sonhos.

Em que o ontem e o hoje são iguais.

Solitários, como o amor não compartilhado.



 


quinta-feira, 15 de setembro de 2022



                  para o bom entendedor




Ah, os leitores, fãs de poesia.

Tão solertes e perspicazes.

Confundem maçã do rosto com a fruta.

Incapazes de enxergar

nada além da realidade preexistente.

Se atém a denotação em detrimento

da conotação.

Justamente a essência da poesia.

A atemporalidade, a metalinguagem.

"Não apenas conjugar os versos

mas fazê-los sangrar", como nos diz

Álvaro Pacheco. 




 



                o porco





A um só tempo

você me deu tudo e tirou.

Me fez feliz e infeliz

em cada encontro e separação.

Entre o júbilo e o desalento

cevando o incauto coração,

como quem engorda o porco 

para o abate.





                         um filho da puta como outro qualquer 






Tudo o que somos, tudo o que fomos, cabem numa maldita 

caixinha de madeira, ou numa urna em forma de vaso. 

Que é onde colocam as cinzas da gente depois da cremação.

Já pensou ? Já vislumbrou essa possibilidade ?

Meio sinistro, é verdade, mas melhor, penso eu, 

que apodrecer aos poucos, comido pelos vermes, até virar 

um amontoado de ossos, 

e por fim no pó do qual, dizem as Escrituras, todos viemos.


O fato é que a gente vale muito pouco. 

Isto na melhor das hipóteses, porque a verdade 

é que não valemos nada.

Nada que justifique a soberba, a empáfia, a bazófia que tanto

se vê por aí, ainda mais depois do advento

do mundinho das redes sociais.

Tudo bem que, como diz o sábio Bukowski, sempre

haverá dinheiro, bêbados e putas para contrabalançar, 

Para nos fazer sentir menos escrotos.

De repente, até uma boa pessoa.

Boa o suficiente - em nossa cabeça - para julgar os outros.

Se achar melhor que os outros.

No fundo, uns pobres coitados, que se iludem a si mesmos.

Acreditando na farsa que montam.

Até levarem o tranco inesperado. 

O golpe de misericórdia.

Mas quem sou eu para julgar, apontar o dedo.

Por mais sacaneado, ultrajado, traído, não posso esquecer

que fiz a mesma coisa. Sacaneei, ultrajei, traí.

Em suma, um filho da puta como outro qualquer.

Que por razões desconhecidas, a vida poupou, condescendeu,

foi generosa.

O que não impedirá que um dia não passe de um punhado

de pó

numa caixinha

ou vaso

que ninguém sabe ao certo

o lugar mais adequado

para jogar.










 






















 

Postagem em destaque

                          o quanto sei de mim Faço do meu papel o sonho de um desditado.  Cavalgo unicórnios a passos lentos, para que o go...